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UMA VISITA À ILHA GRANDE – RIO DE JANEIRO – JUNHO DE 2017

No dia 25 de junho de 2017 , partimos Cledson Barboza , Maurício Verboonen e eu, no rumo da Ilha Grande, no litoral sul do Rio de Janeiro,...

quinta-feira, 18 de julho de 2019

DUAS VISITAS AOS ARENITOS DO BURACO DO PADRE – 1995 / 2019




Acima – Cachoeira do Buraco do Padre, no interior de um cânion arenítico, em forma de dolina, no estado do Paraná

No dia 12 de março de 1995, eu chegava pela primeira vez à curiosa formação rochosa arenítica do Buraco do Padre, próxima à cidade de Ponta Grossa, no Paraná. A excursão fazia parte de uma expedição realizada àquele estado, que tinha como objetivo central a elaboração de um projeto de paisagismo para a unidade industrial de gás carbônico da Liquid Carbonic Indústrias SA. O então presidente da empresa Julio Isnard me propusera melhorar a paisagem da fábrica, situada em Araucária, próximo a Curitiba, da mesma forma que fizera com outras unidades no Rio de Janeiro.

Aceitei a missão, propondo a realização de uma expedição, que me traria subsídios naturalistas para ajudar a enfrentar o desafio de um projeto paisagístico na Região Sul, adotando tantos elementos botânicos nativos quanto me fosse possível. A expedição me levou a colher importantes subsídios sobre as paisagens botânicas dos planaltos paranaenses, que me ajudariam não apenas no paisagismo da unidade industrial de Araucária, mas também na edição de meu livro Fitogeografia do Brasil, Uma Atualização de Bases e Conceitos, exatos vinte anos depois da viagem.

Em março de 2019, voltei ao Buraco do Padre, pensando em rever suas paisagens, encontrando o local já contemplado por uma Reserva Particular bastante organizada e bem cuidada. Tratei de reeditar o relatório de minha excursão de vinte e quatro anos antes, como forma de resgatar seu aspecto histórico nas minhas expedições, fazendo-o acompanhar de observações e imagens atuais. Boa leitura!

Visita ao Buraco do Padre

Ainda no Parque Estadual de Vila Velha, onde estivera horas antes, o subtenente João Ceci, do Batalhão de Polícia Militar Florestal do Estado do Paraná, me informara da existência de uma região ainda pouco explorada denominada Buraco do Padre, situada em algum lugar ao norte dali. Apesar de geograficamente próximo, esse local só poderia ser atingido de carro mediante uma volta considerável, passando por Ponta Grossa. Garantiu o meu gentil informante que uma incursão ao local não me traria arrependimentos. Resolvi, então seguir as indicações do policial e parti no rumo do Buraco do Padre.

Atravessei Ponta Grossa, por seus arrabaldes, e pude constatar o poder florescente das agroindústrias paranaenses, em plena expansão, dando à cidade um aspecto de poderoso centro industrial. Seguindo o rumo de uma localidade chamada Itaiacoca, atravessei os campos nativos, ora ocupados por lavouras de soja, ora por lavouras de milho, entremeados por visões de afloramentos rochosos e arenitos. A estradinha asfaltada me conduziu a uma variante de terra, até bem conservada pelo tipo de locais que atravessa, e ao local conhecido como Buraco do Padre, cerca de 50 minutos após minha saída de Vila Velha.

(A situação das estradas permanece praticamente a mesma, desde então – julho de 2019)



Acima – A estrada rural de acesso ao Buraco do Padre, nos dias atuais, observando-se a frente de cuestas desgastada da cimeira de arenito que originou paisagens como a do Parque Estadual de Vila Velha e da unidade que visitava, distantes poucas dezenas de quilômetros uma da outra


Como já era domingo e fazia bastante sol, algumas famílias haviam acorrido ao local para se refrescar num límpido riacho que centraliza a região e para fazer churrasco. Assim, quando eram 13:40h, com todo o meu equipamento preparado, parti para o campo, ouvindo uma miscelânea de ritmos que emanavam, cada um deles, de um acampamento familiar diferente: cancioneiro gaúcho se mesclava ao rock e folk americano e ao samba carioca. (Isso já não mais ocorre, graças à implementação do Parque Natural, sendo vedadas atividades perturbadoras do ambiente – julho de 2019).

O Buraco do Padre é um sistema de cachoeiras que centraliza um belo vale de arenitos e afloramentos perdidos em meio às fazendas da região. Parti, inicialmente, rumo à atração maior que dá nome ao local. Boa parte do vale já se encontra, há muito, descaracterizado e aculturado. Restos de matas se fundem a lavouras e pastos abandonados. A bracatinga (Mimosa scabrella – família Fabaceae) surgia com frequência nas faixas de transição entre vegetações abertas e fechadas, enquanto consideráveis grupos de um tipo de angico, ocupavam o estrato arbóreo das matas ribeirinhas.

Na medida em que a trilha bem aberta se aproximava do riacho, surgiam numerosos grupos de fetos arborescentes constituídos por samambaiuçús da mesma espécie assinalada na região de Araucária (Cyathea corcovadensis – família Cyatheaceae). Também ocorrem na região do Buraco do Padre as samambaias arborescentes Cyathea delgadii, estas bem mais altas e delgadas. As bromélias dos gêneros Vriesea e Tillandsia predominavam no segmento epífita.

Seguindo o rumo contrário à corrente do riacho límpido e agitado, escutava o crescente rumor de uma cachoeira adiante e, é claro, disparava ansioso o ritmo do meu coração. Atravessei com algum cuidado o riacho, num trecho sobre o qual haviam sido dispostas algumas grandes pedras quadradas que facilitavam a travessia e, logo adiante, já percebi um tipo de portal natural (Atualmente, existe passarela muito bem instalada, em madeira, que torna o passeio seguro e menos danoso ao ambiente – julho de 2019). Nas duas margens do riacho, neste ponto, algumas placas ali colocadas me deixaram surpreso pelo grau de cuidado que o pessoal do Paraná dispensa aos seus parques e reservas naturais. Nelas estava escrito: "Área em recuperação, por favor, não passe". O mais incrível é que o pedido vinha sendo totalmente respeitado e os visitantes utilizavam educadamente o caminho sugerido.

Cerca de quinze minutos após ter deixado o carro, eu entrava na câmara do assim denominado Buraco do Padre, que dá nome ao local. A visão é absolutamente fascinante. Certamente, se trata de mais uma das belezas marcantes que a natureza espalhou pelo Brasil para atrair e deslumbrar turistas como eu. Ao penetrar no bojo da soberba chaminé, o que se faz por baixo, pela sua base, tem-se uma incrível visão ao se olhar para o alto e ver um círculo de céu azul, no topo e uma alvacenta catadupa d'água a saltar ruidosa da parede da gruta, despencando sobre um lago raso à frente. Nas frestas úmidas da rocha escura, penduradas a coisa de 40m, observam-se verdejantes samambaiaçús de xaxim (Dicksonia sellowiana) e outras ervas favorecidas pelo microclima formado no interior do salão natural.


Acima – Desenho esquemático que ilustrava o relatório da expedição de 1995, mostrando as características da cachoeira do Buraco do Padre




Acima – Fronde da samambaia arborescente Cyathea corcovadensis (Trichipteris corcovadensis), no campo aberto



Acima – Aspecto interno da floresta subtropical que cerca a cachoeira do Buraco do Padre, às margens do córrego do mesmo nome, cercado de samambaiaçus Cyathea delgadii

Adiante – Os caules das ciateáceas (samambaiaçus) da floresta perúmida subtropical propiciam ambiente ideal à instalação de delicadas outras samambaias e musgos, que formam elegantes jardins verticais em miniatura








Acima – Onde eu caminhara sobre pedras, em 1995, uma bem instalada passarela dá hoje as boas-vindas à câmara do Buraco do Padre


Acima – Antessala da dolina do Buraco do Padre


Perdem-se alguns de nossos sentidos mais primordiais, quando observamos essas formações naturais tão admiráveis. Assim, como por mágica, eu observava alguns filetes de gotículas d'água que, desprendendo-se do teto abobadado do Buraco do Padre, desciam das altas paredes negativas, como se estivessem fora do prumo. Na verdade, é claro, eu é que estava sendo enganado pelas ilusões espeleológicas e as séries de gotas de água cristalinas é que mostravam qual era a verdadeira linha de prumo. Parado ali, ao fundo da vasta furna, tenuemente iluminada por luzes esverdeadas pelo reflexo limoso dos paredões, diante da turbulenta queda d'água, sob o efeito de jatos encanados de ar frio e úmidos, imaginei-me, por um momento, um verdadeiro Arn Sacknussen, da Viagem ao Centro da Terra de Julio Verne. Quando se viaja pelos mais diferentes recônditos da terra semisselvagem brasileira, imbuído da sede de conhecimento e aventura, revivem-se romances e ficções, numa prova inegável de que a vida imita a arte. Só espero, sinceramente, que reste às gerações vindouras o direito de navegar por um mundo que ainda guarde segredos e mistérios a serem pesquisados, lugares perdidos a serem visitados e sensações românticas a serem sentidas.

Permaneci poucos minutos no interior do Buraco do Padre e resolvi partir logo para o reconhecimento dos rochedos acima, que me pareciam guardar boas surpresas. Retornando um pouco pela trilha principal, peguei uma pequena variante que subia em direção aos contrafortes de rocha da margem esquerda do córrego do Buraco do Padre. Subindo pela trilha, deparei-me com um paredão levemente inclinado em negativa que formava como que um salão que muito me lembrou o matacão de pedra, perdido no vale do rio Soberbo, Serra dos Órgãos, RJ, onde eu e o meu amigo Paulo Raguenet nos abrigávamos, em nossas prolongadas atividades de pesquisas, pelos idos dos anos 1970 e 1980.

Comecei a galgar a lateral do paredão, pelo seu flanco esquerdo, subindo por um caminho muito íngreme, agarrando-me a raízes e pedras. Percebi alguns indivíduos da orquidácea Bifrenaria harrisoniae aderidos aos rochedos. Com a rápida ascensão que conseguia, iam se descortinando belos visuais do vale abaixo. Destacavam-se sempre as belas copas dos pinheiros-do-paraná (Araucaria angustifolia – fam: Araucariaceae) a emergir do dossel florestal. Em poucos minutos, atingi um pequeno trecho de campo e percebi que não mais valeria a pena continuar por ali.

A poucos metros de mim, observava o topo da furna do Buraco do Padre. De dentro da cratera, emanava o forte ruído da cachoeira. Contudo, entre mim e ela, havia uma ameaçadora fenda, uma verdadeira rachadura erodida que impedia por completo minha passagem. Esses rochedos de arenito podem ser perigosos e traiçoeiros, se não andamos muito atentos. Acima de mim, também a poucos metros, se estendia o topo do platô. Mas, atingi-lo por ali demandaria algumas escaladas arriscadas para um excursionista solitário, numa terra distante pelo menos 800km do companheiro de caminhadas mais próximo. Resolvi, pois, não correr riscos. Tentaria galgar o platô por outros caminhos existentes.

Assinalei, neste ponto, inúmeros arbustos interessantes, a grande maioria deles pertencentes à família botânica Asteraceae (= Compositae), exibindo muitas "margaridinhas" alegres e amareladas, e à família Melastomataceae, representada por típicas quaresminhas roxas ou lilases (Tibouchina dubia). Marcando o segmento herbáceo rupestre, via as orquídeas Epidendrum secundum e as bromélias espinhentas do gênero Dyckia. Dali mesmo, resolvi retornar para procurar outro acesso ao platô acima.



Acima – Na vegetação florestal que se entranha entre as paredes úmidas de arenito, podem ser encontrados elementos botânicos interessantes e ornamentais, como a palmeirinha-aricanga Geonoma schottiana (família Areaceae), cuja fronde equivale àquela dos samambaiaçus no aproveitamento da luz sob o coberto florestal – Abaixo – notar o belo quadro proporcionado pelas velhas folhas de Dicksonia sellowiana, arqueadas contra o solo



Acima – Asplenium cf. brasiliense é uma pteridófita que abunda nos locais mais escuros da floresta subtropical de araucárias do Sul, vegetando desde em ambiente epifítico, quanto na forma rupícola, agarrada às pedras cheias de musgos – Abaixo




Acima – Aspecto da floresta subtropical do Sul do Brasil, observada junto aos arenitos do Buraco do Padre


Acima – Araucaria angustifolia (Araucariaceae) é elemento característico da floresta subtropical de Ponta Grossa. Não é espécie dominante, no Buraco do Padre, mas representa marco fundamental na paisagem – Abaixo



Observei também ali algumas populações do xaxim verdadeiro (Dicksonia sellowiana – fam: Dycksoniaceae), ao descer da tal trilha. Atingindo o salão rupestre, continuei contornando seu flanco direito, deparando-me, desta vez, com caminho mais brando que me permitiu fácil subida até as primeiras porções do altiplano. Eram 14:45h, quando atingi um matacão de pedra lisa, onde resolvi fazer uma pequena parada para beber um pouco d’água e comer algumas castanhas-de-caju, alimento que tenho achado extremamente apropriado para essas excursões, por seu elevado teor energético, e que fora a mim introduzido, com esta finalidade, pelo meu colega aventureiro e cineasta David Sonnenschein, na Chapada dos Guimarães.

(Essa área do Parque Natural se encontrava fechada, por ocasião de minha recente visita, o que infelizmente me impediu de revisitar a cimeira rochosa, onde observara os quadros que se seguem – julho de 2019).

O rochedo onde eu parara era um verdadeiro modelo em miniatura dos processos naturais de erosão que formam as "cidades de pedra" características dessa região do Paraná. Numa de suas pontas, um grupo de pequenas protuberâncias à forma de papilas se elevava a uma altura média de 40cm acima da superfície lisa. O vento e a chuva fazem descolar milhões de partículas finas de areia abrasiva que corroem de forma escultural esses blocos colunares eretos. O formato resultante é sempre o de lápide ou coluna ou taça, aos moldes dos soberbos gigantes de pedra de Vila Velha.

Nos restos dessas areias finas que se depositavam em pequenas bacias da pedra plana, surgiam solos tênues onde se instalavam populações de uma cactácea muito ornamental que eu podia ali examinar e identificar como Parodia ottonis. O diâmetro médio de cada barrica esférica formada pela planta era de aproximadamente 5cm, constituindo-se a espécie em verdadeira joia botânica.

Quando eram 15:00h, voltei a caminhar sobre os campos de altitude, percebendo outras falhas ou fendas profundas que ocorriam sempre perto dos precipícios e que, perigosamente, sempre faziam caber nelas um corpo humano. Poucas dezenas de metros do ponto onde parara, encontrei uma trilha bem aberta que parecia ligar ao topo da cratera já visitada. Caminhando um pouco mais por esta trilha, atingi um estranho poço, também em forma de cratera, para dentro do qual se precipitava o córrego do Buraco do Padre por uma cachoeirinha de uns 3m de altura, bem balneável até. O curioso neste poço é que a água não saía por algum outro vertedouro, como seria de se esperar. Mas penetrava num tipo de gruta sinuosa, à forma de sumidouro, e desaparecia da superfície da terra para surgir nalgum outro local.

Analisando melhor o local, confirmei minhas suspeitas iniciais: esta cratera e aquela do Buraco do Padre eram imediatamente vizinhas, formando um conjunto onde a primeira recebe o córrego e o passa para a segunda, através de suas paredes, como mostra um esboço que apresento neste trabalho, sem a pretensão de constituir corte exato. Sobre a boca da grande furna do Buraco do Padre, encontrei um jovem que tirava fotos do fundo do poço. Era um rapaz natural de São Borja, estado do Rio Grande do Sul, que me contou já ter vindo visitar a região outras vezes. Relatou-me sobre grupos de alpinistas que costumavam atar cabos aos pedregulhos da boca da chaminé e descer pendurados em meio às fortes águas da cachoeira.

Resolvi subir mais um pouco e examinar uma grande seção de campos altitudinais situados acima da cratera. Galguei uma subida, em meio a uma vegetação herbácea amplamente dominada por licopódios primitivos, onde surgiam, com relativa abundância, algumas eriocauláceas (Paepalanthus polyanthus) que desenvolvem hábito muito semelhante ao das bromeliáceas, ocupando espaços naturais muitíssimo próximos das Dyckia spp.

Sobre um grupo de rochas soltas que encimavam a elevação, observei interessantes bromélias que resolvi fotografar. Eram plantas muito esculturais e exibiam características deveras xerofíticas, ocorrendo associadas a minúsculos cactos colunares coraliformes (Rhipsalis cf. neves-armondii). Constatei tratarem-se de Aechmea distichantha, numa forma vinácea muito vistosa. A distribuição de luz no ambiente era um pouco complicada, me obrigando cansativas ginásticas para obtenção dos melhores ângulos. Enquanto terminava essas atividades fotográfico-acrobáticas, observei, ao longe, um grupo de alpinistas pendurados numa grande taça de arenito, a dezenas de metros de altura. Somos todos realmente loucos, pensei. E, como diz o ditado popular; "cada louco com suas manias"; cá estava eu, também, dedicando-me às minhas.

Enquanto trabalhava, concentrado na vida selvagem, acabava por não perceber a contínua ação de algumas dessas vidas selvagens que me assaltavam avidamente as poucas partes expostas da pele, sugando meu sangue e se tornando gorduchos cravos: eram os desagradáveis mosquitos do tipo borrachudo que só me deram sossego quando espalhei sobre a pele um produto repelente de insetos.

Eram 15:38h e resolvi parar para descansar um pouco. Permaneci ali por uns dez minutos, recuperando minhas forças, e continuei minha exploração no topo do morro.
Enquanto caminhava pela campina entremeada de afloramentos rochosos, onde surgiam mais colônias de cactos esféricos, esvoaçavam pequenas aves que percebi serem curiangos (caprimulgídeos), a cada moita mais densa da qual me aproximava. Essas aves insetívoras são muito comuns nas noites enluaradas de todos os campos e capoeiras do Brasil, sempre entoando seu melancólico canto: "amanhã eu vou..." Assustadas com minha passagem, voavam um pouco desorientadas e procuravam outra moita protegida, para continuar seu sono.

Num espraiado de pedra, observei um fato curioso que não pude constatar se tinha se originado de alguma ação humana ou das forças naturais do intemperismo: uma lasca pesada de rocha, em forma de escama, com cerca de 1,20m de diâmetro, jazia fresca ainda, a coisa de 2m do ponto de onde se fragmentara, estando em posição totalmente invertida em relação ao encaixe primitivo. Tão pesado pedregulho saltara da porção original, por alguma razão, e não havia sequer marcas de ter sido arrastada ou carregada. Sabe-se lá se fora aquilo causado por um raio ou variação abrupta de temperatura. Ou talvez, quem sabe, algum grupo de excursionistas loucos poderia ter aprontado a molecagem. Mais um mistério das excursões.

Segui meu caminho, procurando me aproximar da grota por onde corria o riacho do Buraco do Padre. Cheguei a um tipo de plataforma de pedra, à beira de um paredão, e pude ver o córrego lá embaixo, a uns 30m de profundidade, correndo no fundo da grota. As copas soberbas dos pinheiros, colonizadas de barba-de-pau (Tillandsia usneoides – fam: Bromeliaceae), se espraiavam bem à minha frente. Mais uma bela visão nesta expedição pelo Sul do Brasil. Porém, descer ao riacho seria absolutamente impossível dali.

Observando a paisagem ao redor, vislumbrando as bordas superiores do grande vale por onde andava, percebi serem elas tomadas por pastagens extensivas. Via o gado pastando naqueles campos e notei a presença de cercas ao redor do tal vale. Devido às perigosas fendas, grotas e à pedregosidade do solo no local, os fazendeiros procuravam manter seu gado longe dali, com medo de perdê-lo. Graças a isso, as espécies vêm conseguindo sobreviver e escapar à inexorável escalada de destruição da biodiversidade perpetrada pela pecuária primitiva, desde muitos séculos.

Quando já eram 16:10h, resolvi iniciar minha volta ao carro, pela mesma trilha principal por onde viera. Ao passar pela grande taça de pedra, não pude resistir à tentação de observar, por uns instantes, os loucos alpinistas pendurados, sem cerimônias, nas escarpas íngremes, brincando com a lei da gravidade. As 16:40h, três horas após o início dessa pequena incursão, estava de volta ao automóvel, muito satisfeito com um dia completo de contatos com essa fantástica região.

A Seguir – A erosão diferencial, tanto eólica quanto hídrica, é a responsável pela longa formação dos relevos ruiniformes tanto do famoso Parque Estadual de Vila Velha, quanto do Buraco do Padre. As formas são sempre muito atraentes, sugerindo esculturas criadas pelas mãos de arquitetos da paisagem





Adiante – A grande concentração de colunas de arenito na paisagem enseja surgimento de notável flora rupícola e saxícola:


Acima e Abaixo – Tillandsia lorentziana e Tillandsia cf. tenuifolia são as duas espécies de bromélias mais numerosas na rocha nua de arenito do Buraco do Padre



Acima – Detalhe de Tillandsia lorentziana vegetando sobre arenitos do Buraco do Padre
Abaixo – Segmento de rocha com notável população de Tillandsia lorentziana




Acima – Curioso exemplar isolado de Tillandsia cf. tenuifolia a vegetar na forma de mobile decorativo, sob ponta de rocha de arenito


Acima – Rhipsalis cf. neves-armondii (fam: Cactaceae) é planta bastante variável em seus hábitos, surgindo como microcolunas eretas, diretamente da superfície dos afloramentos do Buraco do Padre


Abaixo – Partes dos afloramentos de arenito se encontram imersas em meio à vegetação florestal, ou envolta por comunidades mais densas, onde a flora é diferente daquela das rochas ensolaradas



Acima – Philodendron ( = Thaumatophyllum) loefgrenii é a principal planta da família Araceae nos locais menos expostos da rocha


A Seguir – Uma espécie de bromélia do gênero Dyckia coloniza as franjas dos afloramentos rochosos, tirando partido de nicho extremamente singular nas comunidades.








Acima – Aspecto característico da vegetação que reveste a encosta rochosa do parque do Buraco do Padre: a farta disponibilidade de luz permite a entrada de elementos fortemente heliófilos, de índole tropical, como a palmeira-jerivá (Syagrus romanzoffiana – fam: Arecaceae)


Acima – Vegetação da cimeira rochosa do Buraco do Padre, bastante similar aos campos rupestres, que foi discutida em meu livro - Fitogeografia do Brasil – sendo denominada campos entre rochas 
Abaixo – Tibouchina dubia (fam: Melastomataceae) é uma das mais lindas espécies características dos campos entre rochas do Buraco do Padre




Acima – Vista parcial da cimeira rochosa próxima à dolina do Buraco do Padre, onde a delicada arvoreta Myrcia cf. guianensis (fam: Myrtaceae) é espécie bastante importante – Abaixo



A Seguir – A chaminé do Buraco do Padre nada mais parece, quando vista de cima, que uma simples cratera escura. Embora não represente paisagem cárstica típica (evoluída sobre rochas calcárias), ela se originou de processo bastante similar, ou seja, do solapamento de camada sobrejacente de rochas sobre espaço cavernoso escavado pela água




Acima – As águas do córrego do Buraco do Padre, vindas do altiplano de arenitos e campos acima, verte primeiramente sobre poço circular, para depois penetrar num duto natural, que a conduzirá à parede da câmara, onde surge como rumorosa cascata (ver primeiras imagens da postagem)


A Seguir – A flora saxícola da cimeira do Buraco do Padre também carrega plantas bastante típicas e difere um tanto das demais vegetações rupestres locais, embora compartilhem elas diversas espécies



Acima – Paepalanthus polyanthus (fam: Eriocaulaceae) desenhada durante a expedição de 1995



Acima – A bromélia Aechmea distichantha é espécie relativamente comum na região, ocorrendo como epífita, ou de forma rupícola/saxícola, como estes exemplares do alto do Buraco do Padre
Abaixo – Aechmea distichantha de forma vinácea e fortemente heliófila encontrada em 1995 no local, não tendo sido possível chegar até elas, nesta segunda visita




Acima – Epidendrum secundum é orquídea largamente dispersada, em quase todos os estados brasileiros, sempre em afloramentos rochosos, como o Buraco do Padre




Acima – Desenho elaborado no bloco de campo da expedição de 1995, figurando este autor a contemplar o curioso deslocamento de uma lasca de rocha, na cimeira do Buraco do Padre.
Abaixo – Fotografia tirada em 1995, que mostra o enigmático fenômeno do desplacamento e deslocamento lateral da pesada lasca





domingo, 7 de julho de 2019

EXPEDIÇÃO À SERRA DO RONCADOR – FEVEREIRO DE 2019



Nos últimos dias de fevereiro de 2019, partimos Sérgio Basso e eu na direção da lendária Serra do Roncador, no leste do estado de Mato Grosso, saindo de Primavera do Leste. Seguiríamos uma direção já por nós conhecida em parte, cruzando o rio das Mortes e a Cachoeira da Fumaça, lugar que havíamos investigado havia algum tempo – ver Expedição ao Médio Vale do rio das Mortes . A Serra do Roncador sempre se viu envolta no misticismo e nas lendas, desde que o geógrafo e expedicionário inglês Coronel Percy Fawcett desapareceu na região, em 1925, quando procurava pela cidade perdida, que denominara Z. Seu verdadeiro paradeiro  jamais foi suficientemente desvendado, embora se acredite que possa ter sido assassinado por tribos indígenas que povoavam a região, naqueles tempos, ou até mesmo que tenha sido vítima de bandidos errantes.

O mistério do Coronel Fawcett já inspirara inúmeras outras expedições, que misturavam a busca pelo viajante com a esperança de realmente encontrar algum lugar paradisíaco, com indícios da vinda de seres extraterrestres. O fato é que, em nosso caso, nada mais buscávamos, os dois expedicionários do Século XXI, que a botânica daquelas terras, que correspondem a compartimento ainda não suficientemente conhecido pela ciência, embora a colonização agropecuária há muito já lhe tenha dominado a paisagem.

Apesar de ainda até hoje suscitar olhares míticos, por parte do próprio povo do Mato Grosso e Vale do rio Araguaia, ao qual se encontra diretamente relacionada, a Serra do Roncador propriamente dita não representa cadeia montanhosa digna de nota. Aliás, esse maciço nada mais é do que um conjunto de superfícies de cimeira testemunho de gigantescos processos de erosão ocorridos entre o Terciário e o Pleistoceno, resultando em platôs elevados na faixa dos 850m, entre a Barra do Garças e Nova Xavantina, além de cristas residuais sem expressão, que se estendem rumo ao norte do estado, acompanhando a depressão do rio Araguaia. A bela Serra Azul, que cerca a cidade de Barra do Garças, é disjunção da Serra do Roncador, possuindo natureza rigorosamente idêntica.

Sob enfoque biogeográfico, a Serra do Roncador realmente reúne características bastante importantes, sendo parte da soberba torção do Arco de São Vicente, que liga geneticamente a borda do Pantanal do Mato Grosso à Depressão do Araguaia, formando uma cicatriz neotectônica notável – veja imagem Google anexada. O grande geógrafo Aziz Ab’Sáber postulou com precisão a origem sincrônica dessas duas depressões, surgidas pelo alívio de ciclópicas tensões tectônicas, entre o final do Terciário e o Quaternário inferior. A oeste, a subsidência da imensa planície pantaneira drenou a região da bacia do rio Paraguai, enquanto a leste, entre os estados do Mato Grosso e Goiás, surgiu o famoso rio Araguaia, cada um dos dois seguindo rumos opostos, o primeiro na direção da Bacia do Prata; o segundo acompanhando o Tocantins, rumo ao Amazonas.

Essa força neotectônica serviu para condicionar, ao longo dos dois últimos milhões de anos, a redistribuição de uma flora pretérita que dividia elementos amazônicos e meridionais, sendo notáveis seus efeitos nas paisagens de tepuis e mesas que se espalham pelo corredor de pediplanos profundos espalhados desde Cuiabá e Chapada dos Guimarães, no Mato Grosso, até o encontro dos rios Garças e Araguaia, na cidade chamada Barra do Garças, divisa com Goiás. Veja também a expedição à região de Nobres, no Mato Grosso, que contemplou seção importante do Arco de São Vicente – Expedição às Paisagens de Calcário de Nobres - As paisagens de frentes de cuestas elevadas ainda segue dali para Mossamedes, Jataí e Mineiros, em Goiás, acompanhando a fratura do Planalto Central. Mas, para efeitos de nosso interesse momentâneo, o Arco de São Vicente e a Serra do Roncador representavam o foco de nossas investigações geográficas e botânicas.

Acompanhe um pouco do que vimos, nesta viagem, nas imagens que se seguem:



Abaixo – Imagem extraída do Google Earth mostrando a localização da Serra do Roncador, acima de Barra do Garças, no Vale do rio Araguaia





Acima – Em nossa saída de Primavera do Leste, rumo à Serra do Roncador, enfrentamos muita chuva, no vale do rio das Mortes, o que chegou a nos deixar temerosos de fracassar em nossa expedição. O tempo não melhorou muito, mas conseguimos concluir o percurso com sucesso

Adiante – Seriemas (Cariama cristata – família: Cariamidae) são marcos faunísticos do Centro-Oeste do Brasil e convivem com a paisagem agropecuária do Mato Grosso




A Seguir – Ainda que enfrentando tempo nublado, conseguimos divisar algumas das paisagens de frentes de cuestas que celebrizaram a Serra do Roncador, emprestando-lhe aspecto místico, o que atrai muita gente para conhece-la




Acima – Chegando aos contrafortes da Serra do Roncador, entre Barra do Garças e Nova Xavantina

Adiante – Bandos de maracanãs-pequenas (Diopsittaca nobilis – família: Psittacidae) visitavam as árvores, ao pé da Serra do Roncador



A Seguir – Na saia das frentes de cuestas e planaltos tabuliformes da Serra do Roncador, abundam castelos e mesestas ruiniformes, que são restos indecompostos do processo erosivo que vem modelando o maciço, há mais de dois milhões de anos. Esses rochedos areníticos guardam surpresas fascinantes, tanto no que se refere à sua flora, quanto aos sinais da passagem de paleoíndios, que habitaram o abrigo dessas morrarias, milhares de anos atrás




Acima – O exame detido das formações ruiniformes da Serra do Roncador permite não apenas observar populações de velosiáceas do gênero Vellozia, que vegetam diretamente sobre o arenito, mas também revela camadas de stone-lines de idade provavelmente Cretácea, na forma de depósitos de seixos rolados aprisionados no sedimento de arenito – veja a base da rocha


Acima – Palmeirinha típica do Cerrado (Syagrus flexuosa – família: Arecaceae) se abrigando sob a proteção de afloramentos rochosos da Serra do Roncador


Adiante – duas imagens – Os mais genuínos cerrados rupestres habitam os vales anfractuosos que se entremeiam aos rochedos ruiniformes da franja da Serra do Roncador. A Fitogeografia reputa a estas fisionomias particulares de vegetação savânica a origem de grande parte do estoque arbóreo que caracteriza o cerrado stricto-sensu, país afora




Acima – O cerrado rupestre encontra substrato fundamental nos lençóis de seixos e pedras fragmentares que recobrem a rocha ainda coesa das superfícies de cimeira da Serra do Roncador. Subsistem de parcos depósitos de colúvios e procuram umidade no coração da terra, enfiando suas raízes persistentes nas frestas e fraturas do arenito

Abaixo – Sobre o cume de um dos morros-testemunho da Serra do Roncador, surge uma Norantea guianensis (família: Marcgraviaceae), planta dramaticamente adaptada ao ambiente rupícola. Suas raízes buscam provimento morro abaixo, sendo possível observar a linha de seixos na escarpa erodida do morrote



Acima – A cactácea Cereus bicolor habita a Serra do Roncador. Outrora, vinha sendo confundida com sua congênere C. hildmannianus, cuja dispersão se dá, na verdade, no sentido de São Paulo e Paraná, atingindo o Sudeste e Sul. São claramente vicariantes entre si

Adiante – Pequenas cavernas, encravadas nos castelos ruiniformes da Serra do Roncador, exibem petroglifos grafados há milhares de anos por paleoíndios, que habitaram todo o Centro-Oeste. Seu estado de conservação é visivelmente crítico, não contando com qualquer proteção contra o vandalismo e a própria erosão




A Seguir – Uma das paisagens botânicas mais representativas do topo da Serra do Roncador é mesmo uma grande extensão de cerrados rupestres, que se mesclam aos afloramentos de arenito que lhe condicionam. Nesta área, pode-se examinar detidamente o processo de exumação do stone-line que domina boa parte da cimeira da serra. Os seixos diminutos, os maiores com as dimensões de um ovo de galinha, podem ser vistos ainda aprisionados no sedimento que formou a rocha de arenito, entre 145 e 66 milhões de anos antes do presente, provavelmente. A rocha arrasada pelo clima atual libera essa miríade de seixos quartzíticos, que se depositam à forma de cangas decorativas e abrigam plantas singulares, como se observa a seguir:




Acima – As clareiras limpas e destituídas de vegetação não foram criadas pela devastação humana, sendo na verdade produto da aridez relativa do substrato pedregoso grosso assentado diretamente sobre a rocha. Notar as palmeirinhas acaules Allagoptera cf. leucocalyx que habitam essas clareiras e sustentam a fauna local com seus coquinhos

Abaixo – As poucas arvoretas que habitam as manchas de solos mais profundos se concentram em manchas de geografia complexa, tendo certamente muito a ver com a atividade de cupins e formigas, cujos ninhos marcam a micropaisagem local e sobre os quais se concentram bromeliáceas como Bromelia sp. e Ananas ananassoides


Acima – Um dos elementos arbóreos mais importantes desse trecho de vegetação é uma laurácea – Mezilaurus crassiramea, vista ao centro da imagem e abrigando Bromelia sylvicola sob sua copa

A Seguir – Planta bastante ornamental, embora injustamente desconsiderada pela jardinocultura tropical, é Himatanthus sucuuba (família: Apocynaceae), cujas folhas elegantes e flores alvas bem se prestariam ao cultivo em nossas cidades








Acima – Hymenaea cf. stigonocarpa (família: Fabaceae) e suas lindas flores

Adiante – Nosso interesse maior eram mesmo os inimitáveis jardins naturais de rochas, que surgiam escondidos, em meio aos fragmentos de cerrados rupestres, tendo como sinalizadores paisagísticos algumas vistosas Vellozia sp. (canelas-de-ema da família Velloziaceae), sob cujas frondes em forma de rosetas suspensas e, em meio ao cascalho delicadamente arranjado, despontavam cactáceas globuliformes e bromeliáceas espinescentes do gênero Dyckia:





Acima – Discocactus heptacanthus é uma cactácea esférica, que facilmente se esconde entre seixos ou sob a folhagem seca, mas sob sol pleno. Suas flores são noturnas e, talvez graças a isso, conseguem passar despercebidas pela mania coletora dos populares


Acima – As bromélias do gênero Dyckia representam enigma evolutivo-adaptativo de uma extensa região compreendida entre Mato Grosso do Sul, Goiás e Mato Grosso, sugerindo contar histórias ainda não desvendadas do passado Quaternário de parte do Centro-Oeste. Na Serra do Roncador, encontramos esta espécie ainda não identificada, a mesma que habita a Serra Azul, próximo à cidade de Barra do Garças



Acima – Dyckia sp. em flores, na Serra do Roncador


Acima – Orlando Graeff examinando Dyckia sp.
Abaixo – Sérgio Basso posa junto a um dos admiráveis jardins naturais da Serra do Roncador



Abaixo – Em nosso caminho de volta a Primavera do Leste, encontramos uma população de bromélias Dyckia cf. secundifolia, muito próxima à margem da rodovia BR070, vegetando algumas diretamente sobre a rocha nua e escaldante




Acima – Gralha-do-campo (Cyanocorax cristatellus – família Corvidae) que assistia a nosso trabalho, no topo da Serra do Roncador