Cattleya sincorana em seu habitat, na Chapada Diamantina
Entre o final de outubro e início de novembro de 2018,
chegávamos novamente à Chapada Diamantina, dez anos após nossa passagem
anterior, mas com um objetivo em comum com a expedição anterior: encontrar em
flores a raríssima orquídea Cattleya sincorana (= Laelia sincorana = Hadrolaleia sincorana), cujo florescimento não havíamos logrado
testemunhar na expedição de 2008 (veja - Expedição Chapada Diamantina 2008). É claro que todos os demais
aspectos da natureza deslumbrante da região não seriam desconsiderados, pelo
contrário, viriam a representar notáveis resultados em nossa contínua pesquisa
fitogeográfica. Porém, não restava dúvida – encontrar Cattleya sincorana em flores seria o verdadeiro apogeu de tamanho
esforço, que se iniciara com minha vinda do Mato Grosso, onde estava, para
encontrar meu companheiro de viagens naturalistas Maurício Verboonen, vindo ele do Rio de Janeiro, especialmente para
este fim.
Tendo nos encontrado em Brasília (DF), dias antes, havíamos
percorrido a importante interface entre os domínios do Cerrado, Floresta Atlântica
e Caatinga, que se estende de forma complexa, ao longo do médio rio São
Francisco, nos dias anteriores (ver postagem anterior - Paisagem de Calcários ). Sediados então na
pequena cidade baiana de Ibicoara, já na Chapada Diamantina, percorreríamos
diversas áreas de campos rupestres, em busca de suas plantas e de suas
paisagens botânicas – destaque para a orquídea Cattleya sincorana, tão ameaçada de extinção, nos dias de hoje.
Para isso, contávamos com as valiosas indicações do amigo e
especialista em orquídeas brasileiras Francisco
Miranda que, dos USA, onde hoje reside, nos orientava sobre o
posicionamento geográfico das reduzidas populações de Cattleya sincorana, que havia estudado minuciosamente, muitos anos
antes.
A Serra do Sincorá é setor de imensa importância, na grande
Cadeia do Espinhaço, que se estende de Minas Gerais à Bahia e que abriga
diversos hotspots de diversidade
botânica. O segmento do Espinhaço caracterizado como Chapada Diamantina é uma autêntica
zona de choque evolutivo, caracterizada pelo progressivo desnudamento de um
velho arco de soerguimento de mais de 500 milhões de anos. Inumada pelos
sedimentos da Formação Barreiras, durante o Terciário, esta longa sutura
geológica se viu progressivamente erodida, ao longo de mais alguns milhões de
anos, que fizeram “colidir” estoques florísticos atlânticos com aqueles outros
continentais e áridos, do hinterland
brasileiro. Resultado: índices imensuráveis de diversidade biológica, expressos
numa flora inigualavelmente variada e bela.
Veja adiante, com as usuais imagens comentadas, os aspectos
desta visita à Chapada Diamantina:
A seguir – Nosso primeiro dia foi integralmente dedicado a
encontrar as raras orquídeas Cattleya sincorana, que habitam
faixa altitudinal da ordem de 1.000 – 1.400m. Para isso, tivemos que subir até
o cume das áreas planálticas da região, apoiando-nos nos apontamentos de
Francisco Miranda, que ali estivera, anos antes, estudando essas preciosas
plantas
Acima – A base das
chapadas é hoje quase integralmente cercada por lavouras primitivas, conduzidas
sem qualquer cuidado com a erosão ou a propagação do fogo. O café é cultura que
vem se difundindo com prioridade
Acima – Durante a
ascensão ao topo da chapada, podem ser avistadas vastas áreas aculturadas, ao
longo dos vales. Nada resta da paisagem original dessas depressões, que foram
palco de garimpos e suas atividades de apoio, desde o Brasil Colônia
Acima – O ruidoso
aracuã-de-barriga-branca (Ortalis araucuan) é ave comum,
nessas áreas periféricas, sendo aparentado com os jacus, porém,
consideravelmente menores
A seguir – O topo das chapadas não é de forma alguma monótono, seja
por sua topografia, que compreende vales subordinados e falésias íngremes, seja
por sua flora deslumbrante
Acima – Os extensos
afloramentos da Chapada Diamantina são palco de complexos processos erosivos,
que continuam trabalhando suas feições e originando novas paisagens, em
diversas escalas. Desde imensas mesas (tepuis), a matacões aplainados, que
sustentam flórulas variadas, essas chapadas formam cenário de tirar o fôlego,
onde quer que se caminhe
Adiante – Observe as velhas rochas residuais, deixadas tal qual
esculturas pelo longo processo de erosão diferencial ocorrido nos últimos
milênios. O quartzito é o material predominante e sua dureza cria verdadeiras “obras
de arte”, elaboradas pela natureza paciente, por sobre pedestais ciclópicos e
calcinados
A seguir – O fogo tem
sido agente destruidor de superlativa expressão, em todo o país, coisa que
ganha contornos trágicos na Chapada Diamantina, cuja flora é de natureza
extremamente vulnerável. O verdadeiro papel do fogo na evolução das paisagens
do país, quiçá da América Meridional, é ainda bastante controverso e não temos
escondido nossa discordância com sua naturalidade anterior ao homem. Nossa
busca pela orquídea Cattleya sincorana,
tanto quanto nossa contemplação e investigação do restante da flora baiana,
teve como assunto principal o resultado catastrófico de incêndios ocorridos ao
menos dois anos antes de nossa chegada.
Acima e adiante – A notável
velosiácea Vellozia sincorana, de porte arborescente e largos caules
espessados pelas bainhas de velhas folhas, é o suporte (forófito) absolutamente
prioritário e exclusivo da linda orquídea que buscávamos. Ocorre que essas belas
plantas esculturais vêm sendo gradual e radicalmente aniquiladas pelo fogo, que
se repete com períodos de recorrência cada vez menores, atingindo também
mortalmente a resiliência das populações da orquídea
Acima – Velho esqueleto
calcinado de Vellozia sincorana, sustentando bromeliáceas do gênero Vriesea, que se instalam
oportunisticamente sobre o antigo forófito que abrigava Cattleya sincorana
Acima – Orquídea Cattleya
sincorana esquecida pelos coletores, ainda vegetando sobre o galho de
uma Vellozia
sincorana há muito aniquilada pelo fogo
Acima – Sinais explícitos
da coleta de orquídeas Cattleya sincorana, representados
por abundantes galhos de Vellozia sincorana cortados a facão.
A coleta extrativista das orquídeas, que são ainda hoje vendidas em feiras
regionais, ou simplesmente levadas por traficantes de plantas aos orquidários
do Sudeste, representa a outra força destruidora da espécie, que já vem sendo
levada ao limiar da extinção. Associa-se a isso a tradicional utilização dos
galhos da velosiácea como tição acendedor de fogões e lamparinas, em toda a
região
A seguir – Encostas acentuadamente
inclinadas e formadas por miríades de matacões de quartzito são pátria de
vastas populações de Vellozia sincorana, que se associa a
algumas poucas outras plantas do gênero. Faceando os vales profundos e retendo
farta umidade atmosférica, já foram abrigo de numerosas orquídeas Cattleya
sincorana, que foram minguando gradualmente, mercê da intensa coleta
extrativista e da intensificação dos incêndios, que ascendem esses planos
inclinados com a fúria redobrada por ventos intensos. O resultado tem sido o
recuo das velosiáceas e o declínio das orquídeas
Adiante – A busca incansável pelas plantas não foi em vão, desta
vez. Conseguimos afinal encontrar algumas delas, não sem extremo esforço, para
subir até a faixa acima dos 1.400m, onde resistiam algumas poucas plantas, que
se mostravam floridas.
Acima e abaixo – As delicadas
orquídeas Cattleya sincorana se refugiam sobre as partes menos atingidas
pelo fogo das velosiáceas, onde algumas pouquíssimas plantas exibiam flores
vistosas
Abaixo e a seguir –
Outras plantas vegetam de forma rupícola (litofítica), diretamente sobre o
quartzito, porém, em superfícies planas, onde sua ocorrência sugere ser
oportunista/alternativa
Acima – A presença
humana se torna evidente, na observação desta imagem, que nos faz lembrar que
os coletores extrativistas podem vir de todos os lados; e as chamas
destruidoras dos incêndios podem se iniciar em qualquer parte da Chapada, como
pode ser visto ao fundo, onde se percebem sinais recentes de fogo
Acima – Cattleya
sincorana e a forma como ocorre, nos caules espessos de Vellozia
sincorana, na Chapada Diamantina – Abaixo – Detalhe da mesma planta
Acima – Cattleya
sincorana (detalhe de flores)
Acima – Mesmo em
locais menos evidente, Cattleya sincorana poderá assumir
hábito litofítico
Acima – Flor de Cattleya
sincorana em plena antese
Adiante – Na faixa
altitudinal de 1.000 a 1.400m, vegetando no mesmo ambiente que Vellozia
sincorana e sua já rara companhia Cattleya sincorana, surgem diversas
outras plantas notáveis da Chapada Diamantina, que comporta muitas ocorrências
exclusivas
Acima – Angelonia
verticillata (família Plantaginaceae)
Anteriores – Begonia
grisea (família Begoniaceae)
Acima – A vistosa
orquídea Cyrtopodium flavum florescendo junto aos cladódios prateados da
cactácea Micranthocereus purpureus, que é planta característica da
região visitada
Anteriores – A pequena
bromélia vinácea Neoregelia baiana, cuja ocorrência abarca boa parte da Cadeia
do Espinhaço
Anteriores – Sincoraea
albopicta (= Orthophytum
albopictum – família Bromeliaceae), a maneira que ocorre na Chapada
Diamantina e em detalhe, ao início do florescimento)
Acima – Vistosa trepadeira
da família Fabaceae, bastante comum na área do estudo
Acima – Gomesa
blanchetii, uma orquídea que pode ser encontrada em quase todas as
zonas de altitude do Planalto Atlântico, desde o Sudeste ao Nordeste
Anteriores – As bromélias
do gênero Hohenbergia apresentam
taxonomia complexa, havendo diversas espécies representadas na Chapada
Diamantina, muitas delas afins umas das outras. Nas fotos anteriores, Hohenbergia
cf. utriculosa
Acima – Palicourea
marcgravii (família Rubiaceae)
Acima – Luxemburgia
diciliata (família Ochnaceae)
Acima – Mandevilla
bahiensis (família Apocynaceae)
Acima – Schultesia
bahiensis (família Gentianaceae)
Acima e abaixo – Vriesea
chapadensis é espécie característica de bromélia dos altiplanos da
Chapada Diamantina, vegetando das mais variadas formas e representando
importante micro-habitat para anfíbios e insetos, que subsistem da água guardada
no seu tanque, em meio ao ambiente seco dos altiplanos. Notar sua resistência
aos incêndios repetidos, que favorecem relativamente a planta
Acima – O diminuto
anfíbio Rhinela granulosa, uma das espécies que habita as bromélias do
altiplano e apresenta fascinante mimetismo
Acima – O autor Orlando Graeff, no instante em que
retornava da faixa altitudinal dos 1.400m, flagrado por Maurício Verboonen, ainda em estado sofrível, após sua passagem
pelas velosiáceas semicarbonizadas daquelas vertentes
A seguir – No segundo
dia de atividades em Ibicoara, fomos conduzidos pelo guia profissional Marcone Domingues à região do Parque Municipal do rio Espraiado, numa faixa
altitudinal próxima dos 550m. A excursão se mostrou esplêndida, seja para se
conhecer uma série de belas paisagens ribeirinhas da Chapada Diamantina,
destaque para a magnífica Cachoeira do
Buracão – atração importante da região – seja para a contemplação da flora,
que é tão diversificada como aquela que visitáramos, na faixa acima dos 1.100m,
na véspera, embora composta por muitas outras espécies diferentes daquelas.
Acima – Cachoeira das
Orquídeas, um dos mais belos saltos do rio Espraiado
(Veja vídeo ao final
da postagem)
Acima – A região do rio
Espraiado se caracteriza pelo afloramento de camadas de arenitos e quartzitos,
evidenciando pretéritos embates entre rochas metamorfizadas e encaixantes. Os
arenitos, bem mais friáveis e macios, se decompõem mais rapidamente e resultam
areias avermelhadas e miríades de fragmentos esfarelados. O resultado
paisagístico é simplesmente espetacular
Acima – Erosão diferencial,
pela qual a água de antigos rios degradou de formas diferenciadas diversas
camadas de rochas de diferentes durezas, resulta esculturas geomorfológicas de
notável beleza, sobre as quais se assenta flora variada. Na foto, velosiáceas,
bromeliáceas e cactáceas dividem espaço sobre amplas lajes de pedra, no rio
Espraiado
Acima – Imiscuindo-se
entre falhas e fraturas da rocha, a água escavou grotas profundas, que
propiciam belos cenários, no rio Espraiado
Acima – Numa linha de
fratura de alívio de pressão do quartzito, surgem lindas bromélias Sincoraea
albopicta, com suas rosetas de coloração encarnada
Acima – Orlando Graeff posa junto ao guia Marcone Domingues, um grande conhecedor
da geografia e da natureza regional
Abaixo – Maurício Verboonen descansa alguns
minutos, ao lado de Marcone, na beira de uma furna, tendo a seu lado plantas de
Vellozia
cf, dasypus,
entre as quais vegetam pequenas bromélias Vriesea lancifolia
Acima – Bromélias litofíticas
Vriesea
lancifolia, tendo como companhia um pequeno lagarto Tropiduris
semitaeniatus, que descansa sobre uma ponta de pedra que lembra uma
cabeça de camelo sonolento
Adiante – Os amplos lajedos de rocha, que circundam o córrego, lhe
emprestaram o nome alusivo à paisagem: rio Espraiado, bastante propício ao
banho, que é efetivamente uma de suas grandes atrações
Acima e abaixo – O solo
raso e arenoso abriga numerosa população de pequenas velosiáceas, entre
arvoretas que fazem remeter às vegetações de restingas litorâneas, com as quais
são realmente bastante semelhantes fitofisionomicamente
Acima – A interface
entre o espraiado e a vegetação arborescente, acima, é marcada por
interessantes jardins naturais, onde Sincoraea albopicta (família
Bromeliaceae) cresce ao seu modo usual – nas anfractuosidades rochosas
Acima – Caminho sobre
lajeiro de quartzito, onde vegetava densa população da cactácea Micranthocereus
purpureus
Acima – Mais uma bela
formação de quartzitos-arenitos do rio Espraiado, circundado por velosiáceas e
cactáceas: obra de arte espontânea da natureza
Acima – A orquídea Encyclia
alboxanthina é planta bastante importante na flora regional e chega a
formar amplas populações, sob arvoretas tênues. Abaixo – As flores de Encyclia
alboxanthina fotografadas na pousada em que estivemos
Acima – Anthurium
affine é planta representativa da flora do Brasil Central e ocorre de
forma numerosa, no córrego Espraiado. Na foto, ao lado de Anthurium petrophilum,
bem menor que ela (família Araceae)
A seguir – Outra arácea
extremamente importante na região é a escultural Philodendron saxicola,
que ocorre em variada gama de substratos, tendo as rochas nuas como ambiente
principal
Acima – Philodendron
saxicola ocorrendo junto com a orquídea Cyrtopodium flavum
Acima – Philodendron
saxicola
Adiante – Outra preciosidade
ornamental do rio Espraiado é a fabácea Calliandra hygrophila, arbusto denso
com lindas flores encarnadas, que vegeta às margens do rio, sobre solos rasos e
arenosos
Acima e abaixo – A orquídea
Epidendrum
orchidiflorum
Acima – Macairea radula
(família Melastomataceae)
Acima e abaixo –
Micranthocereus purpureus (família Cactaceae) em detalhes
Acima – O autor ao
lado de um soberbo exemplar da orquídea Cattleya elongata, também ela
espécie extremamente importante da Chapada, embora sem flores nesta época do
ano
A seguir – As
cachoeiras do Buracão e do Recanto Verde representam o ponto mais importante da
excursão pelo Parque do rio Espraiado.
Acima e anteriores –
Na descida às cachoeiras, paredões de pedra repletos da bromélia Tillandsia
chapeuensis
Acima – A delicada
Cachoeira do Recanto Verde surge diretamente, do meio da parede rochosa, para
desaparecer magicamente no solo, em meio a rochas roladas
Acima – O cânion
estreito, através do qual se tem acesso à deslumbrante Cachoeira do Buracão
Acima – Cachoeira do
Buracão
Abaixo – Nosso carro
avistado do alto de uma montanha: paisagens solitárias da Chapada Diamantina
Vídeo – A Cachoeira das Orquídeas, no rio Espraiado https://www.youtube.com/watch?v=s08eX6OX1gs
Vídeo – Depoimento de Orlando Graeff sobre a situação
conservacionista da orquídea Cattleya
sincorana https://www.youtube.com/watch?v=83n8RhKLo_w