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UMA VISITA À ILHA GRANDE – RIO DE JANEIRO – JUNHO DE 2017

No dia 25 de junho de 2017 , partimos Cledson Barboza , Maurício Verboonen e eu, no rumo da Ilha Grande, no litoral sul do Rio de Janeiro,...

quinta-feira, 27 de junho de 2019

EXCURSÃO PELA RESERVA NATURAL DA FAZENDA IPANEMA – FEVEREIRO DE 2019


Mesmo frequentando habitualmente hoje as áreas protegidas da Reserva Natural da Fazenda Ipanema, em Primavera do Leste, Mato Grosso, resolvi refazer uma excursão aos moldes daquelas que fazia, no meio da década de 1990, quando voltara a frequentar suas matas, muitos anos depois de ter me afastado do estado. Tendo deixado o Mato Grosso ao final de 1989, estado em que vivera por quase toda a década de 1980, somente voltara a pôr os pés na região em julho de 1996, durante uma expedição que empreendi ao Centro-Oeste, passando por Minas Gerais e Goiás. A partir daí, comecei a fazer algumas excursões naturalistas, nessas matas e cerrados da Fazenda Ipanema, deliciando-me com proveitosas incursões nas áreas silvestres relativamente bem conservadas, ao longo da margem do rio das Mortes, que representa a principal divisa da propriedade.

Algumas dessas  excursões foram narradas numa publicação independente – Viagens de Um Naturalista ao Mato Grosso – veiculada no início dos anos 2000, nos anais da Sociedade Brasileira de Bromélias-SBBr, contendo diversas observações naturalistas, que resolvi rever então agora, em fevereiro de 2019, apondo-lhes novas reflexões. Saí então na direção da estradinha que conduz da sede da Reserva, até a margem do rio das Mortes, mesmo eixo de algumas daquelas memoráveis excursões de cerca de vinte anos antes. Tendo andado distante dos velhos relatórios de excursão, por conta da grande carga de trabalho, resolvi desta vez elaborar o presente texto, passando aos leitores as impressões a respeito do que via.

Seguia sozinho, como daquela feita, numa agradável manhã, em que o tempo um pouco nublado mantinha o relativo frescor que marcara a noite. Às 7:30h aproximadamente, larguei o carro no início do cerradão, onde se iniciam as áreas hoje totalmente conservadas, caminhando vagarosa e atentamente, câmera nas mãos, absolutamente concentrado na natureza local. Esses momentos no campo são fundamentais para qualquer naturalista, por mais que os estudos bibliográficos, ou as pesquisas nos computadores sejam necessários ao progresso científico. A natureza se mostra ali ativa, em todos os seus elementos formadores, permitindo que o pesquisador lhes compreenda, no conjunto de sua expressão.

Muito embora a dinâmica surpreendente das sucessões ecológicas do Cerrado ocasione contínuas e perceptíveis mudanças no quadro paisagístico local, as coisas decididamente não haviam se alterado tanto ali. Tornou-se fácil transportar-me às experiências de décadas passadas, bastando começar a examinar internamente a vegetação, coisa que passei a fazer a cada poucas dezenas de metros de caminhada pela estradinha.

A fisionomia geral da florestinha ali não se havia realmente modificado, constituindo-se de evidente transição entre as formações ripárias próximas e o cerradão, que dominava os chapadões acima. Embora jamais tenha recorrido à investigação fitossociológica dessas matinhas, não é difícil notar a presença de elementos hegemônicos há muito conhecidos por nós na região: ali abundavam o pau-pombo (Tapirira guianensis – fam: Anacardiaceae) e o carvoeiro (Sclerolobium paniculatum – fam: Fabaceae), além do onipresente sobreiro (Emmotum nitens – fam: Metteniusaceae), que permeia quase todas as vegetações da região. Seus troncos inicialmente eretos, de coloração pardacenta e textura estriada podiam ser avistados de considerável distância, floresta adentro, haja vista a topografia plana do local.

Aspecto notável é que, como havia observado nas excursões de 1997, o solo sugestivamente raso e indubitavelmente arenoso abaixo não sustenta exemplares muito elevados nessa matinha, sendo frequente e contínua a queda e substituição dessas árvores. Como texturas arenosas estão longe de limitar o crescimento e estabelecimento de grandes árvores, podemos intuir a existência de qualquer condição limitante à entrada delas nesta vegetação, o que parece se relacionar a seu subsolo. Afinal, como veria logo a seguir, grandes espécimes de árvores ocorrem a poucas dezenas de metros dali, na floresta-galeria, sem que elas adentrem esse terreno. Algumas dessas árvores acima relacionadas chegam a pender, inclinando-se sob seu próprio peso, sustentando-se pelo concurso de algumas raízes heroicas e do arrimo das copas das demais ao redor. Novamente e certamente de forma transitória, estabilizam-se e se adaptam à nova posição, resultando troncos curiosamente inclinados, no entremeio da vegetação.


A seguir – aspecto da vegetação da Reserva Natural da Fazenda Ipanema, no trecho inicial da narrativa desta excursão. Sua caracterização é bastante difícil, sob a ótica simplista dos manuais de vegetação, sendo contudo sua flora e estrutura muito próxima do cerradão ou floresta mesófila esclerofila de Rizzini


  

De resto, a paisagem interna é ali monótona, com o solo quase livre de plantas arbustivas e pejado de troncos caídos, além da usual paliçada de arvoretas jovens das mesmas espécies formadoras do dossel. A observação ligeira e despretensiosa dessa florestinha revelava a presença marcante de algumas outras espécies arbóreas: Virola sebifera (fam: Myristicaceae), Himatanthus sp. (Apocynaceae), Vochysia sp. (Vochysiaceae), Siparuna sp. (Siparunaceae), Strychnos pseudoquina (Loganiaceae), entre tantas outras.

Fui seguindo aos poucos, procurando não fazer barulho, pois imaginava topar com alguns representantes da fauna local, cuja atividade temos detectado com crescente intensidade, nos últimos tempos. Apesar das chuvas recentes, que haviam limpado o leito arenoso da estradinha, não conseguia encontrar novas pegadas, mesmo havendo diversas trilhas de bichos cruzando o caminho. Essas inúmeras trilhas eram por mim investigadas, o que fazia sempre examinando minhas vestes, receoso da eventual infestação de carrapatos. Infelizmente, o incremento da bicharada na Reserva se vê invariavelmente acompanhado dessa praga, que certamente os aflige tão mais que a nós. Mas, faço todo esforço para evitar esses desagradáveis parasitas, que me provocam severas reações alérgicas.
Fui sortudo e não me atacaram esses bichinhos repugnantes. Durante o período das chuvas, os carrapatos são muito menos numerosos. Nos galhos de uma árvore mais frondosa, pousou um pica-pau-louro (Celeus lugubris – família: Picidae), bastante tímido com minha presença. Seu topete amarelo-ouro contrastava lindamente com a mancha vermelha característica, que lhe orna os dois lados da cara.

Com as intensas chuvas da estação, as térmitas haviam redobrado seus esforços na escavação de suas galerias no solo, sendo isso bem evidenciado pelos castelos de areia alva que se erguiam pelo chão da floresta. Essa atividade intensa servia para ressaltar claramente um dos mais importantes aspectos fitogeográficos deste recorte da Reserva: os campos de murundus.

Nas excursões de 1997, eu havia assinalado a presença marcante dos murundus, neste exato local onde agora então caminhava, chamando atenção para seu papel determinante no desenho das fisionomias de vegetação. Por ocasião dos estudos conclusivos para meu livro – Fitogeografia do Brasil, Uma Atualização de Bases e Conceitos – publicado em 2015, debrucei-me com ainda maior atenção sobre o tema, tendo realizado algumas excursões na região, não muito distante da Fazenda Ipanema, de modo a conferir a presença dos murundus e sua influência na vegetação. Essas excursões se somaram a incontáveis outras investigações, Brasil afora, em diversos biomas, que já haviam apontado esses imensos termiteiros, alguns remontando a prováveis milhares de anos, como importantes elementos da paisagem botânica. Ali, na Reserva Natural da Fazenda Ipanema, uma vez mais, eu tinha oportunidade de verificar os murundus e sua influência ecológica e paisagística.

Observando atentamente o terreno que me circundava, era muito fácil perceber que as maiores árvores, em verdade a maioria delas somente crescia sobre elevações representadas por esses murundus, algumas dessas dunas contando com até dez metros de diâmetro. Sobre esses cômoros de natureza arenosa, aglomeravam-se árvores com porte considerável e diâmetro de troncos digno de nota. Na rede desconexa de microvales remanescentes, pouco ou nada realmente se estabelecia, salvo plântulas teimosas das próprias espécies arbóreas dominantes, nenhuma delas aparentando bom estado de saúde, além de ocorrerem também uma ou outra bromeliácea dos gêneros Ananas e Bromelia, plantas de natureza terrestre de grande tolerância à saturação de água.

Esses murundus se elevam ali a coisa de até 1,50m sobre o nível primitivo do terreno, fazendo concentrar-se considerável volume de solo bem drenado, o que proporciona adequadas condições de enraizamento. O resultado paisagístico é aquele que vim de referir, abrigando coisa de vinte ou trinta árvores adultas, cujas copas tratam de fechar dossel regular, que jamais permitiria notar a intermitência que apresentam no solo, se observadas a voo de pássaro. Pelo microvales que referi, onde a vegetação raleia, surge uma rede caótica de trilhas de bichos, pelas quais parecem circular antas, porcos-do-mato e outros mamíferos.


Adiante – Vista interna da vegetação que se instala sobre os murundus, sendo possível observar sua elevação e o agrupamento de árvores sobre essa parte do terreno. Notar algumas árvores que se arquearam, sendo sustentadas por suas vizinhas e tendo assim se reafirmado, resultando troncos tortos ou inclinados



A seguir – Termiteiros ativos, sendo possível ver a grande quantidade de solo revolvido e elevado pelos cupins, em apenas alguns dias, dando origem aos murundus, depois de algum tempo



Embora tenha iniciado este relato dizendo que a vegetação não mudara tanto, nos últimos cerca de vinte anos, ficava evidente para mim que o mapa de sua distribuição havia sim este se alterado. Naquele trecho de microtopografia marcada por murundus, a floresta se adensara sobremaneira, desde então, apesar do porte e da altura não terem mudado muito. Eu não contava naqueles tempos com os eficientes recursos fotográficos digitais de hoje, de forma a guardar suficiente material iconográfico para necessárias comparações. Mas, os meus próprios relatórios de campo davam conta de notáveis diferenças, não deixando que meus naturais lapsos de memória enterrassem as lembranças da paisagem local.

Naquele trecho, o cerradão ou similar começava a sofrer transição para um tipo de vegetação marcada por exemplares de árvores das florestas estacionais, como Ficus sp. (família: Moraceae), cujo porte e persistência de folhas ressaltava o ambiente. Mudavam ali os solos, mesmo havendo ainda muitos murundus bem elevados. Pois fora sobre um deles que, numa excursão de 1997, eu examinara vistosa e larga touceira da bromélia epífita Aechmea tocantina, que vegetava nos galhos médios de uma arvoreta baixa, tendo realizado então um esboço que consta daquele relatório de campo. A planta não mais existia agora, talvez sequer seu forófito (árvore-suporte), certamente suplantado e substituído por árvores mais elevadas. Era naquele tempo local muito aberto e iluminado, o que ensejava minha fácil circulação, tanto quanto o excelente desenvolvimento da angustíssima bromeliácea, heliófila por natureza. Hoje, eleva-se ali dossel bem mais sombrio, revelando a intensa dinâmica florestal que venho relatando.

Tenho observado como em algumas décadas apenas tem se alterado significativamente o mapa das vegetações da Reserva Natural da Fazenda Ipanema. As tipologias em si, como afirmei, não se alteram, apenas se sucedem ou se substituem, sendo que a tendência predominante tem sido a do gradativo adensamento. Tenho boas razões para crer que o banimento do fogo, nas últimas décadas, tem sido a principal condição para isso.

Naquela faixa de transição de vegetações, encontrei uma saíra-de-cabeça-azul (Tangara cyanicollis – família: Thraupidae), que pousou nos galhos desnudos de uma arvoreta, pouco acima de mim. Registrei-lhe algumas fotos. Eram cerca de 8:30h.


Acima – Saíra-de-cabeça-azul (Tangara cyanicolis)

Adiante – trecho de vegetação transição, na direção da floresta-galeria, mais abaixo. Nota-se significativo adensamento da floresta, a partir deste ponto




Acima – pica-pau-louro (Celeus lugubris)




Acima – Desenho de Aechmea tocantina feito a partir de planta encontrada neste local, em 1997

Sobre o trecho da “cascalheira”, ainda perdura clareira, até os dias atuais, embora alguns exemplares arbóreos já se tenham instalado. Essas paleocangas lateríticas têm influência um tanto enigmática nas paisagens em que ocorrem e tratei de deixar isso claro, na obra que publiquei, em 2015. O tipo de vegetação que determinará vai depender de uma série de fatores, principalmente aqueles ligados à geomorfologia dos terrenos em que ocorrerão esses lateritos. Não muito distante da Reserva, nos interflúvios de alguns tributários do rio das Mortes, entre eles o rio Suspiro, existem largos campos sobre solos encharcados, com numerosos murundus, que parecem dever sua fisionomia campestre ao governo da drenagem interna dos solos exercida por uma espessa camada de lateritos. Na Fazenda Ipanema, contudo, a maioria dos depósitos de canga laterítica se encontra hoje dominada por árvores, ou pelo menos sob adiantada retomada florestal.

Desde o tempo em que primeiramente andara nesta estradinha, o que remonta à metade da década de 1980, tenho observado a vegetação relacionada a esta cascalheira de que falo a se adensar gradualmente. Sua abertura, em tempo anterior à minha chegada ao Mato Grosso, sugere ter se dado para retirada de cascalho. Fato é que, em 1997, assinalara neste exato local a presença de elementos heliófilos extremos, que prosperavam sobre pequeno fragmento de campo graminoso, destaque para: Paepalanthus cf. speciosus (família: Eriocaulaceae) e Bromelia cf. sylvicola (família: Bromeliaceae), ambas em flores. Desta feita, não consegui observar mais qualquer dessas plantas, que parecem ter retrocedido às bordas da vereda, situada próximo dali.

Desse ponto para frente, a vegetação sofre abrupta transição, no sentido de fisionomia de floresta-galeria, aspecto que em nada se alterara, ao longo dos anos. A condição fortemente saturada de umidade dos solos, sujeita inclusive ao afogamento ocasional, durante a época chuvosa, mostra ser a razão de tão hegemônico domínio florestal na área. Então, de um instante para outro, a floresta se enche de lianas e o sub-bosque se torna notavelmente diversificado, cobrindo-se o chão de melastomatáceas, rubiáceas, marantáceas e tantas outras plantas umbrófilas, que não me seria dado aqui relacionar, a partir de visita tão ligeira.

O “liter” de folhas secas e detritos vegetais era tão espesso, neste local, que chegava a encobrir os pés, ao pisa-lo. Diferentemente do que ocorria poucos metros acima, tornava-se impossível adentrar a mata, sem o concurso do uso do facão, coisa que não fazia parte de meus planos, desta vez. Assim, prossegui caminhando pela estradinha, tão vagarosamente como vinha fazendo, no início da trilha.
Tendo então o dossel da floresta tão mais alto do que na área do cerradão, contemplava imensos jequitibás-vermelhos (Cariniana rubra – família: Lecythidaceae) rigorosamente linheiros, que elevavam suas copas até seus trinta metros. Lá do alto de alguns desses monumentos, desciam raízes pendulares de portentosos guaimbés (Philodendron mello-barretoanum – família: Araceae) de folhas recortadas e caules serpeantes. Encarapitados nas forquilhas dos troncos de elevado fuste, os guaimbés já idosos contorciam seus caules marcados pelas cicatrizes de antigas folhas, emprestando aspecto de roliças sucuris imóveis. Suas longas raízes vinham algumas delas tocar o solo úmido da mata, cá embaixo. Ao menos um desses belos filodendros, assim como sua notável árvore-suporte, era o mesmo que eu admirara e fotografara, cerca de vinte anos antes, durante excursão relatada em Viagens de Um Naturalista ao Mato Grosso.

Nesse trecho de floresta-galeria, vegetam inúmeros Ficus sp. (família: Moraceae) que ainda não tive oportunidade de identificar. Alguns já atingiam considerável porte, o que emprestava à paisagem aspecto pujante. Um deles, o mais notável nas cercanias da estradinha, alargava seu tronco de forma escultural, exibindo alguma multiplicidade de caule e raízes tabulares, que já emergiam no sub-bosque. Sua aparição, em meio à mata densa, acompanhado de outra árvore de tronco risonhamente estampado, ao modo de camuflagem, bem mais esguio que aquela, causava impressão marcante. Velados ambos pela vegetação espessa, despertavam imaginação fantástica, sugerindo míticos seres a me espreitar imóveis, de dentro de um mundo diferente.

Abaixo – trecho da estradinha, no ponto em que começa a atravessar a floresta-galeria




Acima – Belo tronco de Ficus sp. com raízes tabulares


Acima – Philodendron acutatum escandendo sobre tronco, à margem da estradinha


A escala que separa esses dois universos paisagísticos tão próximos – o cerradão e a floresta-galeria – é de natureza temporal e tratei de deixar isso bem claro, em minha análise sobre o complexo de vegetações ribeirinhas do Centro-Oeste, no livro Fitogeografia do Brasil, de 2015. Todo o conjunto de vegetações justafluviais do rio das Mortes se modifica continuamente, sendo algumas fisionomias tomadas e transformadas por outras, ao longo de anos – dezenas, centenas, milhares de anos. A escala das modificações do mapa de vegetações relacionadas ao cerradão, que eu assinalara algumas dezenas de metros acima, residia na escala antrópica de uma vida, permitindo-me nota-la, no decorrer de minhas passagens pelo local. Já a escala de surgimento da floresta-galeria não poderá ser completamente observada por uma mera existência humana, dependendo de centenas, ou milhares de anos para se processar, ao sabor da complexa hidrologia do rio das Mortes e das terras em seu entorno.    

Às 8:50h, atingi o ponto em que a estradinha perfaz acentuada curva à direita, para retomar novamente seu rumo ao rio das Mortes, algumas dezenas de metros adiante. O terreno ali é completamente saturado de umidade e, nesta época do ano em que eu andava, encontrava-se em parte inundado, o que faz parte do ciclo típico das florestas-galeria do Centro-Oeste. Importante lembrar, uma vez mais, o critério que postulei, em minha obra fitogeográfica, ao separar a floresta-galeria, que ora atravessava, da floresta ciliar, à qual me dirigia, na margem do rio das Mortes. Enquanto essa representa vegetação fortemente higrófila, adaptada ao paludismo constante, aquela outra que resguarda as margens do caudaloso rio ocupa diques marginais, que são depósitos arenosos bem drenados e apenas muito ocasionalmente inundáveis. Ambas possuem floras distintas e obedecem a ciclos diferentes nas suas condições morfoclimáticas.

O solo deste trecho, coberto em parte pela água límpida que sobre ele se represara, impedia a livre caminhada, coisa que já me fora permitido fazer, noutras ocasiões, quando pudera examinar com bastante calma os terrenos ao redor. Desta vez, limitei-me a observar as bordas da estradinha, onde podia apreciar bonitos exemplares de Costus arabicus (família: Costaceae), Begonia spp. (Begoniaceae), Heliconia psittacorum (Heliconiaceae), Calathea sp. (Marantaceae) e Anthurium spp. (Araceae), que disputavam acirradamente o andar herbáceo-arbustivo, enquanto incontáveis Philodendron acutatum e Monstera adansonii (Araceae) escapavam rumo às alturas, nos troncos de árvores e arvoretas espetadas na brenha alagadiça.

Examinando a base de alguns dos monumentais jequitibás-vermelhos, que emergiam do solo recoberto pelo espesso folhiço, foi possível reencontrar algumas orquídeas da floresta-galeria: Aspasia variegata, Lockhartia sp. e Trichopilia brasiliensis, todas elas então destituídas de flores, mas já bastante conhecidas por mim, de outras investigações na região.


A seguir – Duas imagens de um mesmo Philodendron mello-barretoanum sobre os galhos da copa de um jequitibá-vermelho (Cariniana rubra) obtidas com cerca de vinte anos de diferença: a primeira, em 1997 e a segunda nesta excursão




Abaixo – desenho ilustrativo de floresta-galeria, extraído da obra do autor (Fitogeografia do Brasil, Uma Atualização de Bases e Conceitos (2015), tendo sido gerado a partir dos modelos da Reserva





Acima – Monstera adansonii


Acima – Floresta-galeria inundada, com as plantas epífitas ou escandentes se abrigando acima do nível máximo da água e fazendo lembrar a floresta inundável do litoral do Sudeste


Acima – Troncos de jequitibás-vermelhos (Cariniana rubra), na floresta-galeria


Acima – orquídea Aspasia variegata, na base de um jequitibá-vermelho
Abaixo – ilustração da orquídea em flor, feita a partir de 1997




Acima – orquídea Trichopilia brasiliensis na base de um jequitibá-vermelho
Abaixo – ilustração de Trichopilia brasiliensis, feita a partir da excursão de 1997




Acima – Heliconia psittacorum

Abaixo – Aspecto geral da floresta-galeria da Reserva Natural da Fazenda Ipanema, destacando tronco de Cariniana rubra



Prossegui em minha lenta caminhada contemplativa, gradativamente deixando para trás a floresta-galeria, para finalmente pôr os pés nos diques marginais arenosos do rio das Mortes, ao qual cheguei às 9:15h. O local onde a estradinha atinge a margem esquerda do rio das Mortes ganhou o nome carinhoso de Porto do Helinho, como é chamado por todos. Essa toponímia particular se deve ao fato de que fora ali, no início dos anos 1990, quando eu já não mais residia no Mato Grosso, que meu saudoso irmão Hélio Roberto Graeff instalara sua rudimentar estrutura de embarque, da qual partia com toda frequência para seus passeios de lancha pelo rio das Mortes. O tal porto nada mais representava que um pequeno quadrado escavado nessa margem, de forma a escapar da forte correnteza, enquanto preparava sua pequena embarcação de alumínio. Nada restou hoje do referido porto, que não fosse o nome a relembrar sua figura alegre.

Estendi minha ligeira vistoria ao restante da clareira que marca o ponto, desde há muito, e na qual meu grande amigo e companheiro frequente de excursões Sérgio Basso instalara um pequeno acampamento, no qual passava alguns dias da semana, a contemplar a natureza, fiscalizando cuidadosamente o local. Sua presença tem servido eficientemente para desestimular invasões furtivas, que eram antes usuais no local. Desse desembarcadouro natural, saíam caçadores e pescadores predatórios, que já haviam imposto pesados danos à natureza da Reserva, até bem pouco tempo.
Sérgio vem ajudando a pôr ordem no Porto do Helinho e cercanias, que já não mais servem de polo difusor da destruição dos bichos e plantas da Reserva. Na margem do rio, fez instalar placas padronizadas de nossa área de proteção, nas quais alerta sobre proibições de entrada, caça e coletas, o que parece vir sendo respeitado pelos que passam pelo rio, em seus barcos.

Permaneci por alguns instantes no Porto do Helinho, aproveitando a calma e a vista bucólica do rio das Mortes, que seguia calmamente, embora correntoso em seu curso, que levaria suas águas nascidas quase na borda do Pantanal, a oeste, até sua foz no portal da Ilha do Bananal, onde deságua no imenso Araguaia. Encetei caminhada então, ganhando o descampado de um varjão próximo, que margeia o curso sinuoso do rio das Mortes, corrente abaixo, formando longa alça meândrica. De cerca de uma centena de metros em que se conseguia caminhar por campo aberto nesse campestre natural, era possível divisar grande extensão de floresta-galeria, que se conecta diretamente ao trecho que cruzara momentos antes, na estradinha pela qual viera. Exemplares idosos de buritis (Mauritia flexuosa – família: Arecaceae), enfiados no meio da floresta-galeria e das matinhas ciliares, davam conta de pretéritas condições vegetacionais do local. Quando eram 9:30h, decidi iniciar meu retorno, que seria quase tão lento quanto a vinda, sempre com olhos abertos e ouvidos atentos à fauna e à flora da Reserva.

Um estranho aspecto ecológico evidenciava o caráter intensamente dinâmico da vida, nesta admirável região tropical. Falo de visível e audível explosão populacional de gafanhotos, que se encontrava em curso ali. Praticamente todas as vegetações da Reserva Natural da Fazenda Ipanema se encontravam invadidas por esses insetos vorazes, sendo eles de avantajado porte e possuidores de lindas asas encarnadas, que sobressaíam durante seus voos curtos. Estavam por toda parte, sendo que algumas árvores já se mostravam severamente desfolhadas, apesar da resiliência do ambiente florestal. Escutava-se o ruído característico produzido por essas pragas esfomeadas, quando esfregavam seus abdomens com as patas, fazendo lembrar centenas de minúsculos pássaros a chilrear no meio da mata.

Vez por outra e em locais diversos do Mato Grosso, ocorrem essas explosões populacionais de gafanhotos. Apesar de serem comuns no estado, esses insetos não produzem essas nuvens todos os anos, tampouco nos mesmos lugares. Por precipitada que possa parecer a afirmação, esses picos populacionais, na região de Primavera do Leste, parecem sempre ter ocorrido durante períodos de transição entre culturas agrícolas diferentes, nos chapadões, mercê das preferências mercadológicas dos produtores. Nos dois últimos anos, crescera assustadoramente a área cultivada com algodão, lavoura imensamente dependente de defensivos agrícolas. Décadas antes, nuvens incontroláveis de gafanhotos prometeram pôr fim à cultura de pastagens e cana-de-açúcar, no meio-norte mato-grossense, acompanhando a então abrupta expansão dessas culturas, ocupando elas hoje espaço secundário no panorama agropecuário regional. Também na região da Reserva Natural da Fazenda Ipanema, durante os anos 1990 e 2000, os gafanhotos se tornaram mais numerosos, coincidentemente durante ciclo expansionista da cotonicultura.

Próximo de 10:00h, já me aproximava de volta ao local onde deixara meu carro. Notei reboliço no arvoredo próximo, percebendo tratar-se de um belo exemplar macho de macaco-prego (Sapajus cay – família Cebidae), que se ocupava de devorar frutinhos de uma Siparuna sp. (família: Siparunaceae), no andar intermediário da vegetação, que ali se fazia transitória para um tipo de floresta seca. O bicho não se acanhou frente à minha presença, permitindo-me obter excelentes imagens fotográficas. Assim que se aproximou outro animal mais jovem, possivelmente uma fêmea, sobre árvore mais elevada, o prego se foi juntar àquele e seguiram para outro canto.
Juntei meus equipamentos e entrei no carro, para retornar à sede. Terminava ali mais uma proveitosa manhã de contatos com a natureza, acompanhado de reflexões sobre a Reserva Natural da Fazenda Ipanema.




Acima – gafanhoto abundante na Reserva


Acima – aspecto de um campo de varjão, na retroterra dos diques marginais do rio das Mortes


Acima – Diagrama extraído do livro Fitogeografia do Brasil exibindo vegetações justafluviais da Reserva Natural da Fazenda Ipanema
Abaixo – Diagrama em detalhe de um dique marginal





Acima - Mauritiella armata, palmeira marcante da margem do rio das Mortes, em desenho de 1997 

Abaixo – Macaco-prego – Sapajus cay





Links sobre a Reserva Natural da Fazenda Ipanema:

Fazenda Ipanema - Conservando a Biodiversidade do Cerrado Mato-Grossense