Mesmo frequentando habitualmente hoje as áreas protegidas da
Reserva Natural da Fazenda Ipanema, em Primavera do Leste, Mato Grosso, resolvi
refazer uma excursão aos moldes daquelas que fazia, no meio da década de 1990,
quando voltara a frequentar suas matas, muitos anos depois de ter me afastado
do estado. Tendo deixado o Mato Grosso ao final de 1989, estado em que vivera
por quase toda a década de 1980, somente voltara a pôr os pés na região em
julho de 1996, durante uma expedição que empreendi ao Centro-Oeste, passando
por Minas Gerais e Goiás. A partir daí, comecei a fazer algumas excursões
naturalistas, nessas matas e cerrados da Fazenda Ipanema, deliciando-me com
proveitosas incursões nas áreas silvestres relativamente bem conservadas, ao
longo da margem do rio das Mortes, que representa a principal divisa da
propriedade.
Algumas dessas
excursões foram narradas numa publicação independente – Viagens de Um Naturalista ao Mato Grosso
– veiculada no início dos anos 2000, nos anais da Sociedade Brasileira de Bromélias-SBBr, contendo diversas observações
naturalistas, que resolvi rever então agora, em fevereiro de 2019, apondo-lhes
novas reflexões. Saí então na direção da estradinha que conduz da sede da
Reserva, até a margem do rio das Mortes, mesmo eixo de algumas daquelas
memoráveis excursões de cerca de vinte anos antes. Tendo andado distante dos
velhos relatórios de excursão, por conta da grande carga de trabalho, resolvi
desta vez elaborar o presente texto, passando aos leitores as impressões a
respeito do que via.
Seguia sozinho, como daquela feita, numa agradável manhã, em
que o tempo um pouco nublado mantinha o relativo frescor que marcara a noite.
Às 7:30h aproximadamente, larguei o carro no início do cerradão, onde se
iniciam as áreas hoje totalmente conservadas, caminhando vagarosa e atentamente,
câmera nas mãos, absolutamente concentrado na natureza local. Esses momentos no
campo são fundamentais para qualquer naturalista, por mais que os estudos
bibliográficos, ou as pesquisas nos computadores sejam necessários ao progresso
científico. A natureza se mostra ali ativa, em todos os seus elementos
formadores, permitindo que o pesquisador lhes compreenda, no conjunto de sua
expressão.
Muito embora a dinâmica surpreendente das sucessões
ecológicas do Cerrado ocasione contínuas e perceptíveis mudanças no quadro
paisagístico local, as coisas decididamente não haviam se alterado tanto ali.
Tornou-se fácil transportar-me às experiências de décadas passadas, bastando
começar a examinar internamente a vegetação, coisa que passei a fazer a cada poucas
dezenas de metros de caminhada pela estradinha.
A fisionomia geral da florestinha ali não se havia realmente
modificado, constituindo-se de evidente transição entre as formações ripárias
próximas e o cerradão, que dominava os chapadões acima. Embora jamais tenha
recorrido à investigação fitossociológica dessas matinhas, não é difícil notar
a presença de elementos hegemônicos há muito conhecidos por nós na região: ali
abundavam o pau-pombo (Tapirira
guianensis – fam: Anacardiaceae) e o carvoeiro (Sclerolobium paniculatum – fam: Fabaceae), além do onipresente
sobreiro (Emmotum nitens – fam:
Metteniusaceae), que permeia quase todas as vegetações da região. Seus troncos
inicialmente eretos, de coloração pardacenta e textura estriada podiam ser
avistados de considerável distância, floresta adentro, haja vista a topografia
plana do local.
Aspecto notável é que, como havia observado nas excursões de
1997, o solo sugestivamente raso e indubitavelmente arenoso abaixo não sustenta
exemplares muito elevados nessa matinha, sendo frequente e contínua a queda e
substituição dessas árvores. Como texturas arenosas estão longe de limitar o
crescimento e estabelecimento de grandes árvores, podemos intuir a existência
de qualquer condição limitante à entrada delas nesta vegetação, o que parece se
relacionar a seu subsolo. Afinal, como veria logo a seguir, grandes espécimes
de árvores ocorrem a poucas dezenas de metros dali, na floresta-galeria, sem
que elas adentrem esse terreno. Algumas dessas árvores acima relacionadas chegam
a pender, inclinando-se sob seu próprio peso, sustentando-se pelo concurso de
algumas raízes heroicas e do arrimo das copas das demais ao redor. Novamente e
certamente de forma transitória, estabilizam-se e se adaptam à nova posição,
resultando troncos curiosamente inclinados, no entremeio da vegetação.
A seguir – aspecto da
vegetação da Reserva Natural da Fazenda Ipanema, no trecho inicial da narrativa
desta excursão. Sua caracterização é bastante difícil, sob a ótica simplista
dos manuais de vegetação, sendo contudo sua flora e estrutura muito próxima do
cerradão ou floresta mesófila esclerofila de Rizzini
De resto, a paisagem interna é ali monótona, com o solo
quase livre de plantas arbustivas e pejado de troncos caídos, além da usual
paliçada de arvoretas jovens das mesmas espécies formadoras do dossel. A
observação ligeira e despretensiosa dessa florestinha revelava a presença
marcante de algumas outras espécies arbóreas: Virola sebifera (fam: Myristicaceae), Himatanthus sp. (Apocynaceae), Vochysia
sp. (Vochysiaceae), Siparuna sp.
(Siparunaceae), Strychnos pseudoquina
(Loganiaceae), entre tantas outras.
Fui seguindo aos poucos, procurando não fazer barulho, pois
imaginava topar com alguns representantes da fauna local, cuja atividade temos
detectado com crescente intensidade, nos últimos tempos. Apesar das chuvas
recentes, que haviam limpado o leito arenoso da estradinha, não conseguia
encontrar novas pegadas, mesmo havendo diversas trilhas de bichos cruzando o
caminho. Essas inúmeras trilhas eram por mim investigadas, o que fazia sempre
examinando minhas vestes, receoso da eventual infestação de carrapatos.
Infelizmente, o incremento da bicharada na Reserva se vê invariavelmente
acompanhado dessa praga, que certamente os aflige tão mais que a nós. Mas, faço
todo esforço para evitar esses desagradáveis parasitas, que me provocam severas
reações alérgicas.
Fui sortudo e não me atacaram esses bichinhos repugnantes.
Durante o período das chuvas, os carrapatos são muito menos numerosos. Nos
galhos de uma árvore mais frondosa, pousou um pica-pau-louro (Celeus lugubris – família: Picidae),
bastante tímido com minha presença. Seu topete amarelo-ouro contrastava
lindamente com a mancha vermelha característica, que lhe orna os dois lados da
cara.
Com as intensas chuvas da estação, as térmitas haviam
redobrado seus esforços na escavação de suas galerias no solo, sendo isso bem
evidenciado pelos castelos de areia alva que se erguiam pelo chão da floresta.
Essa atividade intensa servia para ressaltar claramente um dos mais importantes
aspectos fitogeográficos deste recorte da Reserva: os campos de murundus.
Nas excursões de 1997, eu havia assinalado a presença
marcante dos murundus, neste exato local onde agora então caminhava, chamando
atenção para seu papel determinante no desenho das fisionomias de vegetação.
Por ocasião dos estudos conclusivos para meu livro – Fitogeografia do Brasil, Uma
Atualização de Bases e Conceitos – publicado em 2015, debrucei-me
com ainda maior atenção sobre o tema, tendo realizado algumas excursões na
região, não muito distante da Fazenda Ipanema, de modo a conferir a presença
dos murundus e sua influência na vegetação. Essas excursões se somaram a
incontáveis outras investigações, Brasil afora, em diversos biomas, que já
haviam apontado esses imensos termiteiros, alguns remontando a prováveis
milhares de anos, como importantes elementos da paisagem botânica. Ali, na
Reserva Natural da Fazenda Ipanema, uma vez mais, eu tinha oportunidade de
verificar os murundus e sua influência ecológica e paisagística.
Observando atentamente o terreno que me circundava, era
muito fácil perceber que as maiores árvores, em verdade a maioria delas somente
crescia sobre elevações representadas por esses murundus, algumas dessas dunas
contando com até dez metros de diâmetro. Sobre esses cômoros de natureza
arenosa, aglomeravam-se árvores com porte considerável e diâmetro de troncos
digno de nota. Na rede desconexa de microvales remanescentes, pouco ou nada
realmente se estabelecia, salvo plântulas teimosas das próprias espécies
arbóreas dominantes, nenhuma delas aparentando bom estado de saúde, além de
ocorrerem também uma ou outra bromeliácea dos gêneros Ananas e Bromelia,
plantas de natureza terrestre de grande tolerância à saturação de água.
Esses murundus se elevam ali a coisa de até 1,50m sobre o
nível primitivo do terreno, fazendo concentrar-se considerável volume de solo
bem drenado, o que proporciona adequadas condições de enraizamento. O resultado
paisagístico é aquele que vim de referir, abrigando coisa de vinte ou trinta
árvores adultas, cujas copas tratam de fechar dossel regular, que jamais
permitiria notar a intermitência que apresentam no solo, se observadas a voo de
pássaro. Pelo microvales que referi, onde a vegetação raleia, surge uma rede
caótica de trilhas de bichos, pelas quais parecem circular antas,
porcos-do-mato e outros mamíferos.
Adiante – Vista
interna da vegetação que se instala sobre os murundus, sendo possível observar
sua elevação e o agrupamento de árvores sobre essa parte do terreno. Notar
algumas árvores que se arquearam, sendo sustentadas por suas vizinhas e tendo
assim se reafirmado, resultando troncos tortos ou inclinados
A seguir –
Termiteiros ativos, sendo possível ver a grande quantidade de solo revolvido e
elevado pelos cupins, em apenas alguns dias, dando origem aos murundus, depois
de algum tempo
Embora tenha iniciado este relato dizendo que a vegetação
não mudara tanto, nos últimos cerca de vinte anos, ficava evidente para mim que
o mapa de sua distribuição havia sim este se alterado. Naquele trecho de
microtopografia marcada por murundus, a floresta se adensara sobremaneira,
desde então, apesar do porte e da altura não terem mudado muito. Eu não contava
naqueles tempos com os eficientes recursos fotográficos digitais de hoje, de
forma a guardar suficiente material iconográfico para necessárias comparações.
Mas, os meus próprios relatórios de campo davam conta de notáveis diferenças,
não deixando que meus naturais lapsos de memória enterrassem as lembranças da
paisagem local.
Naquele trecho, o cerradão ou similar começava a sofrer
transição para um tipo de vegetação marcada por exemplares de árvores das
florestas estacionais, como Ficus sp.
(família: Moraceae), cujo porte e persistência de folhas ressaltava o ambiente.
Mudavam ali os solos, mesmo havendo ainda muitos murundus bem elevados. Pois
fora sobre um deles que, numa excursão de 1997, eu examinara vistosa e larga
touceira da bromélia epífita Aechmea
tocantina, que vegetava nos galhos médios de uma arvoreta baixa, tendo
realizado então um esboço que consta daquele relatório de campo. A planta não
mais existia agora, talvez sequer seu forófito (árvore-suporte), certamente
suplantado e substituído por árvores mais elevadas. Era naquele tempo local
muito aberto e iluminado, o que ensejava minha fácil circulação, tanto quanto o
excelente desenvolvimento da angustíssima bromeliácea, heliófila por natureza.
Hoje, eleva-se ali dossel bem mais sombrio, revelando a intensa dinâmica
florestal que venho relatando.
Tenho observado como em algumas décadas apenas tem se
alterado significativamente o mapa das vegetações da Reserva Natural da Fazenda
Ipanema. As tipologias em si, como afirmei, não se alteram, apenas se sucedem
ou se substituem, sendo que a tendência predominante tem sido a do gradativo
adensamento. Tenho boas razões para crer que o banimento do fogo, nas últimas
décadas, tem sido a principal condição para isso.
Naquela faixa de transição de vegetações, encontrei uma
saíra-de-cabeça-azul (Tangara cyanicollis
– família: Thraupidae), que pousou nos galhos desnudos de uma arvoreta, pouco
acima de mim. Registrei-lhe algumas fotos. Eram cerca de 8:30h.
Acima –
Saíra-de-cabeça-azul (Tangara cyanicolis)
Adiante – trecho de
vegetação transição, na direção da floresta-galeria, mais abaixo. Nota-se
significativo adensamento da floresta, a partir deste ponto
Acima –
pica-pau-louro (Celeus lugubris)
Acima – Desenho de Aechmea
tocantina feito a partir de planta encontrada neste local, em 1997
Sobre o trecho da “cascalheira”, ainda perdura clareira, até
os dias atuais, embora alguns exemplares arbóreos já se tenham instalado. Essas
paleocangas lateríticas têm influência um tanto enigmática nas paisagens em que
ocorrem e tratei de deixar isso claro, na obra que publiquei, em 2015. O tipo
de vegetação que determinará vai depender de uma série de fatores, principalmente
aqueles ligados à geomorfologia dos terrenos em que ocorrerão esses lateritos.
Não muito distante da Reserva, nos interflúvios de alguns tributários do rio
das Mortes, entre eles o rio Suspiro, existem largos campos sobre solos
encharcados, com numerosos murundus, que parecem dever sua fisionomia campestre
ao governo da drenagem interna dos solos exercida por uma espessa camada de
lateritos. Na Fazenda Ipanema, contudo, a maioria dos depósitos de canga
laterítica se encontra hoje dominada por árvores, ou pelo menos sob adiantada
retomada florestal.
Desde o tempo em que primeiramente andara nesta estradinha,
o que remonta à metade da década de 1980, tenho observado a vegetação
relacionada a esta cascalheira de que falo a se adensar gradualmente. Sua abertura,
em tempo anterior à minha chegada ao Mato Grosso, sugere ter se dado para
retirada de cascalho. Fato é que, em 1997, assinalara neste exato local a
presença de elementos heliófilos extremos, que prosperavam sobre pequeno
fragmento de campo graminoso, destaque para: Paepalanthus cf. speciosus
(família: Eriocaulaceae) e Bromelia
cf. sylvicola (família:
Bromeliaceae), ambas em flores. Desta feita, não consegui observar mais
qualquer dessas plantas, que parecem ter retrocedido às bordas da vereda,
situada próximo dali.
Desse ponto para frente, a vegetação sofre abrupta
transição, no sentido de fisionomia de floresta-galeria, aspecto que em nada se
alterara, ao longo dos anos. A condição fortemente saturada de umidade dos
solos, sujeita inclusive ao afogamento ocasional, durante a época chuvosa,
mostra ser a razão de tão hegemônico domínio florestal na área. Então, de um
instante para outro, a floresta se enche de lianas e o sub-bosque se torna
notavelmente diversificado, cobrindo-se o chão de melastomatáceas, rubiáceas,
marantáceas e tantas outras plantas umbrófilas, que não me seria dado aqui
relacionar, a partir de visita tão ligeira.
O “liter” de folhas secas e detritos vegetais era tão
espesso, neste local, que chegava a encobrir os pés, ao pisa-lo. Diferentemente
do que ocorria poucos metros acima, tornava-se impossível adentrar a mata, sem
o concurso do uso do facão, coisa que não fazia parte de meus planos, desta
vez. Assim, prossegui caminhando pela estradinha, tão vagarosamente como vinha
fazendo, no início da trilha.
Tendo então o dossel da floresta tão mais alto do que na
área do cerradão, contemplava imensos jequitibás-vermelhos (Cariniana rubra – família:
Lecythidaceae) rigorosamente linheiros, que elevavam suas copas até seus trinta
metros. Lá do alto de alguns desses monumentos, desciam raízes pendulares de
portentosos guaimbés (Philodendron
mello-barretoanum – família: Araceae) de folhas recortadas e caules
serpeantes. Encarapitados nas forquilhas dos troncos de elevado fuste, os
guaimbés já idosos contorciam seus caules marcados pelas cicatrizes de antigas
folhas, emprestando aspecto de roliças sucuris imóveis. Suas longas raízes
vinham algumas delas tocar o solo úmido da mata, cá embaixo. Ao menos um desses
belos filodendros, assim como sua notável árvore-suporte, era o mesmo que eu
admirara e fotografara, cerca de vinte anos antes, durante excursão relatada em
Viagens de Um Naturalista ao Mato Grosso.
Nesse trecho de floresta-galeria, vegetam inúmeros Ficus sp. (família: Moraceae) que ainda
não tive oportunidade de identificar. Alguns já atingiam considerável porte, o
que emprestava à paisagem aspecto pujante. Um deles, o mais notável nas
cercanias da estradinha, alargava seu tronco de forma escultural, exibindo
alguma multiplicidade de caule e raízes tabulares, que já emergiam no
sub-bosque. Sua aparição, em meio à mata densa, acompanhado de outra árvore de
tronco risonhamente estampado, ao modo de camuflagem, bem mais esguio que
aquela, causava impressão marcante. Velados ambos pela vegetação espessa,
despertavam imaginação fantástica, sugerindo míticos seres a me espreitar
imóveis, de dentro de um mundo diferente.
Abaixo – trecho da estradinha, no ponto em que começa a
atravessar a floresta-galeria
Acima – Belo tronco de Ficus sp. com raízes tabulares
Acima – Philodendron acutatum escandendo
sobre tronco, à margem da estradinha
A escala que separa esses dois universos paisagísticos tão
próximos – o cerradão e a floresta-galeria – é de natureza temporal e tratei de
deixar isso bem claro, em minha análise sobre o complexo de vegetações
ribeirinhas do Centro-Oeste, no livro Fitogeografia do Brasil, de 2015. Todo o
conjunto de vegetações justafluviais do rio das Mortes se modifica
continuamente, sendo algumas fisionomias tomadas e transformadas por outras, ao
longo de anos – dezenas, centenas, milhares de anos. A escala das modificações
do mapa de vegetações relacionadas ao cerradão, que eu assinalara algumas
dezenas de metros acima, residia na escala antrópica de uma vida, permitindo-me
nota-la, no decorrer de minhas passagens pelo local. Já a escala de surgimento
da floresta-galeria não poderá ser completamente observada por uma mera
existência humana, dependendo de centenas, ou milhares de anos para se
processar, ao sabor da complexa hidrologia do rio das Mortes e das terras em
seu entorno.
Às 8:50h, atingi o ponto em que a estradinha perfaz acentuada
curva à direita, para retomar novamente seu rumo ao rio das Mortes, algumas
dezenas de metros adiante. O terreno ali é completamente saturado de umidade e,
nesta época do ano em que eu andava, encontrava-se em parte inundado, o que faz
parte do ciclo típico das florestas-galeria do Centro-Oeste. Importante
lembrar, uma vez mais, o critério que postulei, em minha obra fitogeográfica,
ao separar a floresta-galeria, que ora atravessava, da floresta ciliar, à qual
me dirigia, na margem do rio das Mortes. Enquanto essa representa vegetação
fortemente higrófila, adaptada ao paludismo constante, aquela outra que
resguarda as margens do caudaloso rio ocupa diques marginais, que são depósitos
arenosos bem drenados e apenas muito ocasionalmente inundáveis. Ambas possuem
floras distintas e obedecem a ciclos diferentes nas suas condições
morfoclimáticas.
O solo deste trecho, coberto em parte pela água límpida que
sobre ele se represara, impedia a livre caminhada, coisa que já me fora
permitido fazer, noutras ocasiões, quando pudera examinar com bastante calma os
terrenos ao redor. Desta vez, limitei-me a observar as bordas da estradinha,
onde podia apreciar bonitos exemplares de Costus
arabicus (família: Costaceae), Begonia spp. (Begoniaceae), Heliconia psittacorum (Heliconiaceae), Calathea sp. (Marantaceae) e Anthurium spp. (Araceae), que disputavam
acirradamente o andar herbáceo-arbustivo, enquanto incontáveis Philodendron acutatum e Monstera adansonii
(Araceae) escapavam rumo às alturas, nos troncos de árvores e arvoretas
espetadas na brenha alagadiça.
Examinando a base de alguns dos monumentais
jequitibás-vermelhos, que emergiam do solo recoberto pelo espesso folhiço, foi
possível reencontrar algumas orquídeas da floresta-galeria: Aspasia variegata, Lockhartia sp. e Trichopilia
brasiliensis, todas elas então destituídas de flores, mas já bastante
conhecidas por mim, de outras investigações na região.
A seguir – Duas
imagens de um mesmo Philodendron mello-barretoanum sobre os galhos da copa de um
jequitibá-vermelho (Cariniana rubra) obtidas com cerca de vinte anos de diferença:
a primeira, em 1997 e a segunda nesta excursão
Abaixo – desenho
ilustrativo de floresta-galeria, extraído da obra do autor (Fitogeografia do
Brasil, Uma Atualização de Bases e Conceitos (2015), tendo sido gerado a partir
dos modelos da Reserva
Acima – Monstera
adansonii
Acima –
Floresta-galeria inundada, com as plantas epífitas ou escandentes se abrigando
acima do nível máximo da água e fazendo lembrar a floresta inundável do litoral
do Sudeste
Acima – Troncos de
jequitibás-vermelhos (Cariniana rubra), na
floresta-galeria
Acima – orquídea Aspasia
variegata, na base de um jequitibá-vermelho
Abaixo – ilustração
da orquídea em flor, feita a partir de 1997
Acima – orquídea Trichopilia
brasiliensis na base de um jequitibá-vermelho
Abaixo – ilustração
de Trichopilia
brasiliensis, feita a partir da excursão de 1997
Acima – Heliconia
psittacorum
Abaixo – Aspecto geral
da floresta-galeria da Reserva Natural da Fazenda Ipanema, destacando tronco de
Cariniana
rubra
Prossegui em minha lenta caminhada contemplativa,
gradativamente deixando para trás a floresta-galeria, para finalmente pôr os
pés nos diques marginais arenosos do rio das Mortes, ao qual cheguei às 9:15h.
O local onde a estradinha atinge a margem esquerda do rio das Mortes ganhou o
nome carinhoso de Porto do Helinho, como é chamado por todos. Essa toponímia
particular se deve ao fato de que fora ali, no início dos anos 1990, quando eu
já não mais residia no Mato Grosso, que meu saudoso irmão Hélio Roberto Graeff
instalara sua rudimentar estrutura de embarque, da qual partia com toda
frequência para seus passeios de lancha pelo rio das Mortes. O tal porto nada
mais representava que um pequeno quadrado escavado nessa margem, de forma a
escapar da forte correnteza, enquanto preparava sua pequena embarcação de
alumínio. Nada restou hoje do referido porto, que não fosse o nome a relembrar sua
figura alegre.
Estendi minha ligeira vistoria ao restante da clareira que
marca o ponto, desde há muito, e na qual meu grande amigo e companheiro
frequente de excursões Sérgio Basso
instalara um pequeno acampamento, no qual passava alguns dias da semana, a
contemplar a natureza, fiscalizando cuidadosamente o local. Sua presença tem
servido eficientemente para desestimular invasões furtivas, que eram antes
usuais no local. Desse desembarcadouro natural, saíam caçadores e pescadores
predatórios, que já haviam imposto pesados danos à natureza da Reserva, até bem
pouco tempo.
Sérgio vem ajudando a pôr ordem no Porto do Helinho e
cercanias, que já não mais servem de polo difusor da destruição dos bichos e
plantas da Reserva. Na margem do rio, fez instalar placas padronizadas de nossa
área de proteção, nas quais alerta sobre proibições de entrada, caça e coletas,
o que parece vir sendo respeitado pelos que passam pelo rio, em seus barcos.
Permaneci por alguns instantes no Porto do Helinho,
aproveitando a calma e a vista bucólica do rio das Mortes, que seguia
calmamente, embora correntoso em seu curso, que levaria suas águas nascidas
quase na borda do Pantanal, a oeste, até sua foz no portal da Ilha do Bananal,
onde deságua no imenso Araguaia. Encetei caminhada então, ganhando o descampado
de um varjão próximo, que margeia o curso sinuoso do rio das Mortes, corrente
abaixo, formando longa alça meândrica. De cerca de uma centena de metros em que
se conseguia caminhar por campo aberto nesse campestre natural, era possível
divisar grande extensão de floresta-galeria, que se conecta diretamente ao
trecho que cruzara momentos antes, na estradinha pela qual viera. Exemplares
idosos de buritis (Mauritia flexuosa
– família: Arecaceae), enfiados no meio da floresta-galeria e das matinhas
ciliares, davam conta de pretéritas condições vegetacionais do local. Quando
eram 9:30h, decidi iniciar meu retorno, que seria quase tão lento quanto a
vinda, sempre com olhos abertos e ouvidos atentos à fauna e à flora da Reserva.
Um estranho aspecto ecológico evidenciava o caráter
intensamente dinâmico da vida, nesta admirável região tropical. Falo de visível
e audível explosão populacional de gafanhotos, que se encontrava em curso ali.
Praticamente todas as vegetações da Reserva Natural da Fazenda Ipanema se
encontravam invadidas por esses insetos vorazes, sendo eles de avantajado porte
e possuidores de lindas asas encarnadas, que sobressaíam durante seus voos
curtos. Estavam por toda parte, sendo que algumas árvores já se mostravam severamente
desfolhadas, apesar da resiliência do ambiente florestal. Escutava-se o ruído
característico produzido por essas pragas esfomeadas, quando esfregavam seus
abdomens com as patas, fazendo lembrar centenas de minúsculos pássaros a
chilrear no meio da mata.
Vez por outra e em locais diversos do Mato Grosso, ocorrem essas
explosões populacionais de gafanhotos. Apesar de serem comuns no estado, esses
insetos não produzem essas nuvens todos os anos, tampouco nos mesmos lugares.
Por precipitada que possa parecer a afirmação, esses picos populacionais, na
região de Primavera do Leste, parecem sempre ter ocorrido durante períodos de
transição entre culturas agrícolas diferentes, nos chapadões, mercê das
preferências mercadológicas dos produtores. Nos dois últimos anos, crescera
assustadoramente a área cultivada com algodão, lavoura imensamente dependente
de defensivos agrícolas. Décadas antes, nuvens incontroláveis de gafanhotos
prometeram pôr fim à cultura de pastagens e cana-de-açúcar, no meio-norte
mato-grossense, acompanhando a então abrupta expansão dessas culturas, ocupando
elas hoje espaço secundário no panorama agropecuário regional. Também na região
da Reserva Natural da Fazenda Ipanema, durante os anos 1990 e 2000, os
gafanhotos se tornaram mais numerosos, coincidentemente durante ciclo
expansionista da cotonicultura.
Próximo de 10:00h, já me aproximava de volta ao local onde
deixara meu carro. Notei reboliço no arvoredo próximo, percebendo tratar-se de
um belo exemplar macho de macaco-prego (Sapajus
cay – família Cebidae), que se ocupava de devorar frutinhos de uma Siparuna sp. (família: Siparunaceae), no
andar intermediário da vegetação, que ali se fazia transitória para um tipo de
floresta seca. O bicho não se acanhou frente à minha presença, permitindo-me
obter excelentes imagens fotográficas. Assim que se aproximou outro animal mais
jovem, possivelmente uma fêmea, sobre árvore mais elevada, o prego se foi
juntar àquele e seguiram para outro canto.
Juntei meus equipamentos e entrei no carro, para retornar à
sede. Terminava ali mais uma proveitosa manhã de contatos com a natureza,
acompanhado de reflexões sobre a Reserva Natural da Fazenda Ipanema.
Acima – gafanhoto abundante
na Reserva
Acima – aspecto de um
campo de varjão, na retroterra dos diques marginais do rio das Mortes
Acima – Diagrama extraído
do livro Fitogeografia do Brasil exibindo vegetações justafluviais da Reserva
Natural da Fazenda Ipanema
Abaixo – Diagrama em
detalhe de um dique marginal
Acima - Mauritiella armata, palmeira marcante da margem do rio das Mortes, em desenho de 1997
Abaixo – Macaco-prego
– Sapajus cay
Links sobre a Reserva Natural da Fazenda Ipanema:
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