Nos últimos dias de fevereiro de 2019, partimos Sérgio Basso
e eu na direção da lendária Serra do Roncador, no leste do estado de Mato
Grosso, saindo de Primavera do Leste. Seguiríamos uma direção já por nós conhecida
em parte, cruzando o rio das Mortes e a Cachoeira da Fumaça, lugar que havíamos
investigado havia algum tempo – ver Expedição ao Médio Vale do rio das Mortes . A Serra do Roncador sempre se viu
envolta no misticismo e nas lendas, desde que o geógrafo e expedicionário inglês
Coronel Percy
Fawcett desapareceu na região, em 1925, quando procurava pela cidade
perdida, que denominara Z. Seu verdadeiro paradeiro jamais foi suficientemente desvendado, embora
se acredite que possa ter sido assassinado por tribos indígenas que povoavam a
região, naqueles tempos, ou até mesmo que tenha sido vítima de bandidos
errantes.
O mistério do Coronel Fawcett já inspirara inúmeras outras
expedições, que misturavam a busca pelo viajante com a esperança de realmente
encontrar algum lugar paradisíaco, com indícios da vinda de seres
extraterrestres. O fato é que, em nosso caso, nada mais buscávamos, os dois
expedicionários do Século XXI, que a botânica daquelas terras, que correspondem
a compartimento ainda não suficientemente conhecido pela ciência, embora a
colonização agropecuária há muito já lhe tenha dominado a paisagem.
Apesar de ainda até hoje suscitar olhares míticos, por parte
do próprio povo do Mato Grosso e Vale do rio Araguaia, ao qual se encontra
diretamente relacionada, a Serra do Roncador propriamente dita não representa
cadeia montanhosa digna de nota. Aliás, esse maciço nada mais é do que um
conjunto de superfícies de cimeira testemunho de gigantescos processos de
erosão ocorridos entre o Terciário e o Pleistoceno, resultando em platôs
elevados na faixa dos 850m, entre a Barra do Garças e Nova Xavantina, além de
cristas residuais sem expressão, que se estendem rumo ao norte do estado,
acompanhando a depressão do rio Araguaia. A bela Serra Azul, que cerca a cidade
de Barra do Garças, é disjunção da Serra do Roncador, possuindo natureza
rigorosamente idêntica.
Sob enfoque biogeográfico, a Serra do Roncador realmente
reúne características bastante importantes, sendo parte da soberba torção do
Arco de São Vicente, que liga geneticamente a borda do Pantanal do Mato Grosso
à Depressão do Araguaia, formando uma cicatriz neotectônica notável – veja
imagem Google anexada. O grande geógrafo Aziz
Ab’Sáber postulou com precisão a origem sincrônica dessas duas depressões,
surgidas pelo alívio de ciclópicas tensões tectônicas, entre o final do
Terciário e o Quaternário inferior. A oeste, a subsidência da imensa planície
pantaneira drenou a região da bacia do rio Paraguai, enquanto a leste, entre os
estados do Mato Grosso e Goiás, surgiu o famoso rio Araguaia, cada um dos dois
seguindo rumos opostos, o primeiro na direção da Bacia do Prata; o segundo acompanhando
o Tocantins, rumo ao Amazonas.
Essa força neotectônica serviu para condicionar, ao longo dos
dois últimos milhões de anos, a redistribuição de uma flora pretérita que
dividia elementos amazônicos e meridionais, sendo notáveis seus efeitos nas
paisagens de tepuis e mesas que se espalham pelo corredor de pediplanos
profundos espalhados desde Cuiabá e Chapada dos Guimarães, no Mato Grosso, até
o encontro dos rios Garças e Araguaia, na cidade chamada Barra do Garças,
divisa com Goiás. Veja também a expedição à região de Nobres, no Mato Grosso,
que contemplou seção importante do Arco de São Vicente – Expedição às Paisagens de Calcário de Nobres - As paisagens de
frentes de cuestas elevadas ainda segue dali para Mossamedes, Jataí e Mineiros,
em Goiás, acompanhando a fratura do Planalto Central. Mas, para efeitos de
nosso interesse momentâneo, o Arco de São Vicente e a Serra do Roncador
representavam o foco de nossas investigações geográficas e botânicas.
Acompanhe um pouco do que vimos, nesta viagem, nas imagens
que se seguem:
Abaixo – Imagem extraída do Google Earth mostrando a
localização da Serra do Roncador, acima de Barra do Garças, no Vale do rio
Araguaia
Acima – Em nossa saída de Primavera do Leste, rumo à Serra
do Roncador, enfrentamos muita chuva, no vale do rio das Mortes, o que chegou a
nos deixar temerosos de fracassar em nossa expedição. O tempo não melhorou
muito, mas conseguimos concluir o percurso com sucesso
Adiante – Seriemas (Cariama cristata – família: Cariamidae)
são marcos faunísticos do Centro-Oeste do Brasil e convivem com a paisagem
agropecuária do Mato Grosso
A Seguir – Ainda que enfrentando tempo nublado, conseguimos
divisar algumas das paisagens de frentes de cuestas que celebrizaram a Serra do
Roncador, emprestando-lhe aspecto místico, o que atrai muita gente para
conhece-la
Acima – Chegando aos contrafortes da Serra do Roncador,
entre Barra do Garças e Nova Xavantina
Adiante – Bandos de maracanãs-pequenas (Diopsittaca nobilis –
família: Psittacidae) visitavam as árvores, ao pé da Serra do Roncador
A Seguir – Na saia das frentes de cuestas e planaltos
tabuliformes da Serra do Roncador, abundam castelos e mesestas ruiniformes, que
são restos indecompostos do processo erosivo que vem modelando o maciço, há
mais de dois milhões de anos. Esses rochedos areníticos guardam surpresas
fascinantes, tanto no que se refere à sua flora, quanto aos sinais da passagem
de paleoíndios, que habitaram o abrigo dessas morrarias, milhares de anos atrás
Acima – O exame detido das formações ruiniformes da Serra do
Roncador permite não apenas observar populações de velosiáceas do gênero Vellozia,
que vegetam diretamente sobre o arenito, mas também revela camadas de
stone-lines de idade provavelmente Cretácea, na forma de depósitos de seixos
rolados aprisionados no sedimento de arenito – veja a base da rocha
Acima – Palmeirinha típica do Cerrado (Syagrus flexuosa –
família: Arecaceae) se abrigando sob a proteção de afloramentos rochosos da
Serra do Roncador
Adiante – duas imagens – Os mais genuínos cerrados rupestres
habitam os vales anfractuosos que se entremeiam aos rochedos ruiniformes da
franja da Serra do Roncador. A Fitogeografia reputa a estas fisionomias
particulares de vegetação savânica a origem de grande parte do estoque arbóreo
que caracteriza o cerrado stricto-sensu, país afora
Acima – O cerrado rupestre encontra substrato fundamental
nos lençóis de seixos e pedras fragmentares que recobrem a rocha ainda coesa
das superfícies de cimeira da Serra do Roncador. Subsistem de parcos depósitos
de colúvios e procuram umidade no coração da terra, enfiando suas raízes
persistentes nas frestas e fraturas do arenito
Abaixo – Sobre o cume de um dos morros-testemunho da Serra
do Roncador, surge uma Norantea guianensis (família:
Marcgraviaceae), planta dramaticamente adaptada ao ambiente rupícola. Suas
raízes buscam provimento morro abaixo, sendo possível observar a linha de
seixos na escarpa erodida do morrote
Acima – A cactácea Cereus bicolor habita a Serra do
Roncador. Outrora, vinha sendo confundida com sua congênere C. hildmannianus, cuja dispersão se dá,
na verdade, no sentido de São Paulo e Paraná, atingindo o Sudeste e Sul. São
claramente vicariantes entre si
Adiante – Pequenas cavernas, encravadas nos castelos
ruiniformes da Serra do Roncador, exibem petroglifos grafados há milhares de
anos por paleoíndios, que habitaram todo o Centro-Oeste. Seu estado de
conservação é visivelmente crítico, não contando com qualquer proteção contra o
vandalismo e a própria erosão
A Seguir – Uma das paisagens botânicas mais representativas
do topo da Serra do Roncador é mesmo uma grande extensão de cerrados rupestres,
que se mesclam aos afloramentos de arenito que lhe condicionam. Nesta área,
pode-se examinar detidamente o processo de exumação do stone-line que domina boa parte da cimeira da serra. Os seixos
diminutos, os maiores com as dimensões de um ovo de galinha, podem ser vistos
ainda aprisionados no sedimento que formou a rocha de arenito, entre 145 e 66
milhões de anos antes do presente, provavelmente. A rocha arrasada pelo clima
atual libera essa miríade de seixos quartzíticos, que se depositam à forma de
cangas decorativas e abrigam plantas singulares, como se observa a seguir:
Acima – As clareiras limpas e destituídas de vegetação não
foram criadas pela devastação humana, sendo na verdade produto da aridez
relativa do substrato pedregoso grosso assentado diretamente sobre a rocha.
Notar as palmeirinhas acaules Allagoptera cf. leucocalyx que habitam
essas clareiras e sustentam a fauna local com seus coquinhos
Abaixo – As poucas arvoretas que habitam as manchas de solos
mais profundos se concentram em manchas de geografia complexa, tendo certamente
muito a ver com a atividade de cupins e formigas, cujos ninhos marcam a
micropaisagem local e sobre os quais se concentram bromeliáceas como Bromelia
sp. e Ananas ananassoides
Acima – Um dos elementos arbóreos mais importantes desse
trecho de vegetação é uma laurácea – Mezilaurus crassiramea, vista ao
centro da imagem e abrigando Bromelia sylvicola sob sua copa
A Seguir – Planta bastante ornamental, embora injustamente desconsiderada
pela jardinocultura tropical, é Himatanthus sucuuba (família:
Apocynaceae), cujas folhas elegantes e flores alvas bem se prestariam ao
cultivo em nossas cidades
Acima – Hymenaea cf. stigonocarpa (família: Fabaceae) e suas
lindas flores
Adiante – Nosso interesse maior eram mesmo os inimitáveis
jardins naturais de rochas, que surgiam escondidos, em meio aos fragmentos de
cerrados rupestres, tendo como sinalizadores paisagísticos algumas vistosas Vellozia
sp. (canelas-de-ema da família Velloziaceae), sob cujas frondes em forma de
rosetas suspensas e, em meio ao cascalho delicadamente arranjado, despontavam
cactáceas globuliformes e bromeliáceas espinescentes do gênero Dyckia:
Acima – Discocactus heptacanthus é uma
cactácea esférica, que facilmente se esconde entre seixos ou sob a folhagem
seca, mas sob sol pleno. Suas flores são noturnas e, talvez graças a isso,
conseguem passar despercebidas pela mania coletora dos populares
Acima – As bromélias do gênero Dyckia representam enigma
evolutivo-adaptativo de uma extensa região compreendida entre Mato Grosso do
Sul, Goiás e Mato Grosso, sugerindo contar histórias ainda não desvendadas do
passado Quaternário de parte do Centro-Oeste. Na Serra do Roncador, encontramos
esta espécie ainda não identificada, a mesma que habita a Serra Azul, próximo à
cidade de Barra do Garças
Acima – Dyckia sp. em flores, na Serra do Roncador
Acima – Orlando Graeff
examinando Dyckia sp.
Abaixo – Sérgio Basso
posa junto a um dos admiráveis jardins naturais da Serra do Roncador
Abaixo – Em nosso caminho de volta a Primavera do Leste,
encontramos uma população de bromélias Dyckia cf. secundifolia, muito
próxima à margem da rodovia BR070, vegetando algumas diretamente sobre a rocha
nua e escaldante
Acima – Gralha-do-campo (Cyanocorax cristatellus –
família Corvidae) que assistia a nosso trabalho, no topo da Serra do Roncador
Região maravilhosa onde ocorrem muitas Dyckia ainda desconhecidas! Pretendo retornar a essa Região no próximo ano!
ResponderExcluirMuito lindas as imagens. Cenários espetaculares.
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