Relato de uma excursão
realizada em novembro de 2001, pelo naturalista Orlando Graeff, durante viagem a Goiás, revisada e transcrita para
este blog das Expedições Fitogeográficas
Cattleya walkeriana - orquídea-símbolo de Piracanjuba, em Goiás
Durante
uma passagem pelo Município de Piracanjuba, no estado de Goiás, em novembro de 2001, ocasião
em que meu saudoso amigo e companheiro de trabalho Luiz Campos Filho e eu lá estivemos, por conta de um projeto
paisagístico e arquitetônico, visitamos o ribeirão Roda Cuia. Tratava-se de uma
área de terras semisselvagens, situada mais ou menos a Leste da cidade, na qual
se pretendia implantar uma unidade de conservação, com objetivo principal de
conservar o habitat da famosa orquídea Cattleya walkeriana, um tipo de
planta-símbolo da cidade. Esta linda orquídea representa paixão fundamental
para os colecionadores de Piracanjuba, de onde já saíram belos clones em
cultivo e onde se realizam conhecidas exposições de orquídeas, em que esta
espécie é um mote especial.
Segundo a cartografia então disponível no
Município, essas terras se encontravam encravadas entre cristas e franjas da Serra de São José, sendo centralizadas
pelo curso d’água denominado ribeirão do Roda-Cuia, um afluente da margem
esquerda do Rio Piracanjuba. A região é
bastante antiga, do ponto de vista de sua utilização agropecuária, estando a
maior parte das terras de Piracanjuba há muito aculturadas e pouco restando da
fisionomia original dos cerrados que outrora lhe cobriam. Como seria de se
esperar, as serranias e morros acabaram sendo os detentores dos últimos redutos
de vegetação nativa e esta Serra de São José se tornava, nessa época, alvo dos
esforços conservacionistas do Governo Goiano e do Município de Piracanjuba.
Para
lá seguimos meu cicerone e guia Sebastião
Aparecido da Silva e eu na manhã do dia 22 de novembro de 2001. Sebastião, que
os iniciados na orquidofilia conhecem como Sebastian, me conduziu em seu carro,
percorrendo curto trecho de estradas asfaltadas (GO-217) e ganhando logo uma
estrada de terra em razoável estado de conservação, no rumo daquelas serranias.
A paisagem que circunda Piracanjuba é das mais agradáveis e remete às colinas
suavemente onduladas do Brasil Central. Pastagens e pequenas lavouras de
subsistência surgem aqui e ali, sem a marca modernista das extensas lavouras,
tão comuns no Centro-Oeste. Segundo consta, a região de Piracanjuba representa uma
das mais importantes bacias leiteiras de Goiás e isso ficava bem claro, quando
percorríamos essas estâncias, onde se observava gado de boa qualidade a pastar,
em capineiras bem formadas e dispondo de suficientes aguadas por todos os
lados.
A
certa altura, pegamos outra estrada derivativa daquela que percorríamos,
tomando um rumo ainda mais a Leste e começando a ver terras gradualmente mais
selvagens, onde cerrados e cerradões ainda persistiam de pé. Já através de
caminhos bem mais rústicos, começamos a percorrer terrenos bem mais acidentados
do que aqueles de antes. Em determinados momentos, viam-se rochosos que
afloravam da forma típica em Goiás — matacões de pedra enegrecida e calcinada
pelo clima severo do Centro-Oeste. Pareciam ser as primeiras cristas da
referida Serra de São José que se estendia mais ou menos paralelamente ao nosso
rumo, sempre à nossa direita.
As
pastagens, bem mais novas do que aquelas das cercanias de Piracanjuba, ainda
sustentavam de pé, em meio ao capim, velhos troncos de árvores que deviam dominar
estas paisagens. Calcinados pelo fogo ou em estado moribundo, testemunhavam o
ocaso lento dos cerrados e cerradões, frente ao inexorável desenvolvimento da
pecuária que buscava novas terras pelo interior do país. A riqueza atropela a
natureza de maneira impiedosa e não parecem surgir argumentos ambientalistas
que consigam refrear a marcha devastadora dos tratores e bois sertão adentro.
Estávamos ali, Sebastian e eu, justamente à procura de razões que justificassem
futuros projetos de conservação para a Serra de São José e ribeirão Roda-Cuia.
Talvez a beleza dessas terras e eventuais sinais de sua diversidade biológica
pudessem atrair turistas e amantes da natureza, através de projetos
ecoturísticos. Nessa esperança, realizamos uma pequena parada à beira da
estradinha, para um rápido reconhecimento do cerrado.
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Confesso
que estranhei o súbito interesse de Sebastian por um diminuto fragmento de
cerrado de aparente pouca importância, situado tão à margem da estradinha
rural. Contudo, confiante no conhecimento de meu guia sobre a natureza
regional, segui-o e adentrei a vegetação, enquanto já o escutava dizer o mágico
nome da mais importante das orquídeas desta região: Cattleya walkeriana. Pessoa de conversa comedida, Sebastian
não jogava muita conversa fora e, se proferia de forma animada o nome da bela
planta, era sinal evidente de sua presença. E ali estavam elas, não uma, mas
dezenas delas a vicejar em diversas alturas nas arvoretas tortuosas do cerrado
intrincado.
Cabe
notar que o fragmento que observávamos, apesar de já bastante marcado pelas
atividades humanas, se tratava de uma fisionomia típica de cerradão, apesar de
meio enfezado em altura e forma. Constituía-se de algumas árvores típicas do
cerrado, tortuosas e suberificadas, entremeadas por uma infinidade de arbustos
e até lianas. O espaço entre as árvores, sombreado que era, não se apresentava
ocupado por gramíneas, como costumam ser os cerrados strictu senso (cerrados abertos), mostrando-se atapetado por
espessa manta de serrapilheira. E era neste ambiente semissombreado que medrava
grande quantidade de plantas jovens e maduras da orquídea Cattleya walkeriana, juntamente
com uma espécie muito característica do gênero Bulbophyilum, com pseudobulbo arredondado, pequeno, e folha
teretiforme.
Essas
orquidáceas também colonizavam os galhos mais altos de algumas árvores, onde
pareciam estar as plantas mais vigorosas e velhas. Naturalmente, aquele
sub-bosque que examinávamos era um grande berçário de orquídeas. O crescimento
de algumas dessas árvores e sua consequente emergência na altura do dossel
levaria muitas delas a se consagrar na luta pela luz, enquanto boa quantidade
dessas preciosas plantas iria perecer ali mesmo, vitimada pela competição dura
pela vida.
O
referido fragmento de cerrado acompanhava a estrada à forma de corredor,
confinando-se entre ela e uma cerca que limita pastagens bem extensas. Não
deixava de ser uma maneira acertada de se manter uma propriedade — cercada por
corredor de vegetação nativa, sem contato direto com as estradas. Mas certamente
era pena o fato de constatarmos que farta quantidade de cerrados ricos em
espécies de orquídeas já haviam sido aniquilados, para formar aquelas
pastagens. Na beira dessas pastagens, ainda pudemos observar alguns exemplares
da orquídea que persistiam, um deles vegetando diretamente sobre a superfície
de uma pedra, mostrando a grande adaptabilidade da planta. Também observamos
uma bromélia (Aechmea bromeliifolia)
agarrada a um tronco e tomando partido da sua boa situação de luz.
O
hábito de se manterem alguns exemplares arbóreos espetados sobre as pastagens sempre
se revelou importante aliado da conservação, nas terras goianas e por todo o
Cerrado. No Mato Grosso, muitas terras formadas como pastagens ainda exibem
testemunhos da biodiversidade original e fornecem abrigo a aves e outros
bichos. Porém, diante da nova expansão de fronteiras agrícolas naquele estado,
se dava sobre as terras pecuárias, essas árvores vão sendo derrubadas
impiedosamente para a viabilização da mecanização. Com isso, se vai por terra,
literalmente, o que resta de chances de sobrevida à natureza do Centro-Oeste.
Rogo à sorte para que estas terras goianas não se vejam descobertas como aptas
às atividades agrícolas de natureza extensiva. Assim, talvez se consiga dar alguma
sobrevida a essas orquídeas, bromélias e demais joias biológicas (frase mantida do texto original de 2001).
Nos
galhos dessas arvoretas, em suas porções mais ressecadas e iluminadas, também podíamos
observar exemplares de outra bromeliácea: Tillandsia streptocarpa. Trata-se de uma espécie típica do
Brasil Central, com penetração no sul e no semiárido. Estava sem flores, mas
suas inflorescências se preparavam para emiti-las. As flores de T. streptocarpa são azuladas, com
pétalas vistosas e costumam exalar agradável perfume, quando abrem.
Entre
os arbustos a arvoretas, destacavam-se: Tocoyena formosa e Alibertia edulis, o marmelo-de-cerrado
(Rubiaceae); Anarcardium humile,
o cajuzinho (Anacardiaceae); Dalbergia
miscolobium (Fabaceae); Campomanesia pubescens (Myrtaceae), a famosa guabiroba; Himatanthus obovatus
(Apocynaceae); Kielmeyera coriacea
(Calophyllaceae); Syagrus flexuosa
(Arecaceae); Vochysia spp. (Vochysiaceae); Handroanthus ochraceus
(Bignoniaceae), entre tantas outras, sendo a região rica em exemplares de
pequizeiro (Cariocar brasiliense
– Cariocaraceae). Os terrenos eram inteiramente coalhados de pedras, que
afloravam do chão e se mostravam arredondadas e trabalhadas por antigos
processos erosivos. Satisfeitos com as primeiras surpresas botânicas, partimos
no rumo das escarpas da Serra de São José, local que almejávamos nesta
excursão.
Após
atravessarmos algumas porteiras e sedes de fazendolas rudimentares,
aproximamo-nos do local que visitaríamos. Notava-se a iminência de forte
declive à nossa frente. Sebastian alertava para a provável dificuldade que
teria seu carro, um veículo pequeno, com tração dianteira, em vencer a subida
de volta do barranco, caso descêssemos embarcados aquele trecho de estrada.
Decidimos, pois, deixar o carro à beira da estradinha e nos lançar ao interior
do cerradão, em busca de conhecimento. É interessante a nítida confluência
entre dois tipos característicos de vegetação neste ponto: Acima da vertente da
serra, onde estávamos, dominam cerradões e cerrados, em confuso sombreamento
mútuo. Morro abaixo, descendo por dentro das furnas, surgem matas secas muito
altas que, embora já bastante degradadas, ainda exibem altaneiras árvores.
acima - altaneiro pau-óleo fotografado durante expedição ao Roda-Cuia, em novembro de 2001
acima - matas de aroeiras sendo aos poucos destrinchadas, para implantação de assentamentos, em 2001, no vale do rio Roda-Cuia, Piracanjuba, Goiás
Esgueirávamo-nos
por entre a vegetação agreste, sem tentar abrir caminho, coisa que demandaria muito
tempo. Não receávamos nos perder pelo fato de que a serra era bastante regular,
tendo, acima dela, uma estrada que lhe acompanhava paralela. Abaixo, no centro
de uma extensa grota, existiam diversas lavourinhas novas, pertencentes a um
assentamento de trabalhadores rurais. Sobre este assentamento, caberão mais
adiante algumas observações pertinentes. O terreno era pedregoso e inclinado,
percebendo-se inúmeros caminhos naturais de água que já causavam erosão.
As
bordas de chapada, como era o caso desta serra que ora visitávamos, constituem focos
naturais de processos erosivos agressivos. Essa característica geomorfológica é
responsável pela proteção legal que recebem no Código Florestal Brasileiro e
outras tantas leis de proteção ambiental. São terrenos que testemunham a lenta
e gradativa corrosão que sofre o Planalto Central Brasileiro, antiquíssimo
conjunto geológico que domina o Brasil Central. Esse aspecto de evolução do
relevo ocasionava um verdadeiro complexo de grotinhas interdigitadas, matacões
e ravinas por onde caminhávamos com relativa dificuldade. Devido ao avançado da
estação das chuvas, corriam filetes de água por algumas dessas grotas, emprestando
impressão um pouco mais amena ao ambiente.
Em
meio a uma vereda formada pelo afloramento da rocha, encontramos uma população
de bromeliáceas da espécie Dyckia cf.
leptostachya. Tendo já florescido
havia algum tempo, nenhum material botânico pôde ser coletado. Algumas plantas
se mostravam bem idosas, tendo desenvolvido característicos caules, que as
elevavam sobre o solo quente e exposto.
Nosso
passeio culminou na beirada de um soberbo rochoso, com grandes superfícies
expostas de rocha enegrecida, de onde podíamos divisar lindamente todo o vale
abaixo de nós e a outra vertente deste conjunto da Serra de São José. Pudemos
explorar, em suas bordas, locais em que se costuma encontrar flora
característica. A procura não decepcionou e pudemos achar algumas preciosidades
extremamente atraentes e que revelaram a biodiversidade regional. Colônias
intactas de uma cactácea esferoidal – Discocactus diersianus - cobriam largas faixas da rocha
escura. Grande quantidade das bromélias Dyckia
cf. leptostachya completava os jardins
rupestres. Procurando mais, entre as faixas de terrenos espremidas pelas
rochas, surgiam exemplares de outra bromeliácea do gênero Bromelia.
acima - Discocactus diersianus, cactácea ameaçada da região do Roda-Cuia
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acima - Aspecto de afloramentos rochosos, na crista da Serra de São José, no Roda-Cuia
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O
encontro entre a vegetação de cerradão denso e os afloramentos da rocha era
outro espetáculo inesquecível, formando como que esculturas torneadas, nas
quais não se sabia bem o que eram pedras ou raízes e troncos retorcidos das
árvores. Cores e formas se fundiam como se fizessem parte de um monumento
natural. Árvores como o imbiruçú (Pseudobombax longiflorum – família Malvaceae)
são conspícuas nesses locais e muito se prestam aos jogos artísticos da mãe
natureza.
Desse
belvedere natural, conseguíamos ter extensa visão da paisagem abaixo. O
que víamos ali de cima nos convidava a pesquisar mais de perto: era o belo
conjunto entre as montanhas e matas secas goianas, espremidas nas saias das
vertentes e tocando a grande clareira formada pelos recentes assentamentos de
trabalhadores sem-terra. Essa zona de tensão nos instigava a ir lá e constatar
a real situação da natureza diante do avanço humano em curso. Decidimos, pois,
descer ao vale e conhecer de perto aquele quadro. Também tínhamos em mente
vasculhar as nascentes de um córrego que se espalhava pelo centro do vale.
Sebastian resolveu tentar a descida com seu automóvel.
Descer
a estradinha que leva ao fundo do vale era passeio que entristecia um pouco. A
despeito da persistência das matas no lado direito, abaixo do ponto em que
estivéramos, podiam ser observados sinais claros da devastação em curso. O
processo recente de destruição da vegetação parecia mesmo ter se iniciado com a
chegada dos assentados que, como seria de se esperar, ocuparam as manchas mais
férteis de solo, justamente aquelas que abrigavam as derradeiras reservas de
mata de aroeira. Podiam ser vistas extensas lavouras e roçados, ainda com
restos das grandes árvores. A maior parte da madeira fora certamente retirada,
com destaque para a valiosa aroeira (Myracrodruon
urundeuva – família Anacardiaceae), espécie que ainda podia ser
observada, representada por exemplares jovens e imprestáveis para o corte.
Ao
lado da estrada, jazia um tronco de ipê (Handroanthus sp.
– Bignoniaceae) preparado para ser transportado para a madeireira. Cabe
ressaltar que, tanto a aroeira quanto os ipês já se encontravam protegidos pela
lei que, há algum tempo, proíbe seu abate na natureza. Isso não parecia estar
impedindo o corte dessas tantas árvores no local e nenhuma fiscalização deveria
estar sendo feita, uma vez que a madeira era retirada sem constrangimento pelos
posseiros. Num ponto à direita da estrada, antes do final da descida,
resolvemos parar o carro e adentrar a mata alta que ali pode ser vista.
Era
decididamente emocionante para mim, como naturalista, penetrar pela primeira
vez no interior de uma autêntica mata seca goiana. Durante tantos anos,
observara o lento ocaso e o desaparecimento desta qualidade de vegetação no sul
do Mato Grosso, sem que tivesse a oportunidade de visitá-la. Por muitos anos
também, passara lado a lado com a floresta continental do Brasil Central, em
regiões como Rio Verde e Itumbiara (GO), sem que me aparecesse uma simples
chance de conhecer sua natureza. Desta feita, em Piracanjuba, surgia esta
oportunidade de vivenciar tão soberba floresta, ainda que reduzida a um
fragmento um tanto restrito. E foi com os olhos extasiados e curiosos que
penetrei na mata da Serra de São José.
(Observação:
Ainda
durante esta viagem, tivemos a oportunidade de visitar mais uma dessas matas
secas goianas, desta vez, no Santuário Vagafogo, reserva particular pertencente
a Evandro Ayer , em Pirenópolis, região central de GO.)
Erguia-se
a floresta à forma fisionomicamente semelhante àquela amazônica, marcada pela
ocorrência de algumas espécies mais comuns. Entre elas, saltavam aos olhos,
pelo seu agigantamento no dossel superior, o jatobá (Hymenaea courbaril var. stilbocarpa – família Fabaceae) e o pau-óleo (Copaifera langsdorffii – família Fabaceae).
Não obstante a existência de espécies características do sub-bosque, este
parece ser formado predominantemente por plântulas das grandes árvores
dominantes. Com isso, podia-se divisar extensa área ao redor, uma vez que o
ambiente era relativamente aberto. Epífitas havia poucas, provavelmente
existindo maior quantidade nas galhadas superiores das grandes árvores, longe
do alcance de nossos olhos. Sebastian assegurou que a Cattleya walkeriana existia por
ali, mesmo na mata seca. Vegetando sobre os troncos, onde podíamos ver,
apareciam exemplares de orquídeas amazônicas, tais como Aspasia variegata e Lokhartia lunifera. Bromeliáceas
também há poucas, notando-se tão somente Aechmea bromeliifolia e alguns poucos exemplares do que
parecia ser Tillandsia geminiflora var. incana.
A
madeira aproveitável ia sendo extraída, certamente de forma ilegal, mostrando
que, desprovidas de planos de manejo e utilização, essas florestas caminhariam
inevitavelmente para o desaparecimento, em bem pouco tempo. O solo da floresta
revelava sua inequívoca natureza: tratavam-se de manchas de solos latossólicos
eutróficos, derivados dos basaltos da Formação Serra Geral. As matas secas ou
florestas latifoliadas semidecíduas possuem origem edáfica, ou seja, surgem a
partir de manchas mais férteis de solo pelo Brasil Central. Dilapidadas pela
devastação para formação de pastagens ou simplesmente para extração de sua
madeira, essas matas são cada vez mais raras e seria estratégia imensamente
acertada conservá-las, em Piracanjuba.
Durou
relativamente pouco nosso passeio pela mata, uma vez que dela fomos saindo
rapidamente e adentrando o cerradão, na medida em que nos fomos deslocando pela
trilha, rumo ao centro da grota. A tal trilha parecia se tratar de um carreador
ou divisa e havia sinais da passagem frequente de pessoas e até de motocicletas
pelo local. Através deste caminho, ganhamos o centro da grota e chegamos ao
assentamento dos sem-terra.
(Comentários
a seguir integralmente transcritos das impressões originais de 2001) Parece
estar um tanto proibido ou politicamente incorreto, nos dias de hoje,
tecerem-se comentários críticos ao modelo de reforma agrária brasileiro. O
perigo constante é do serem confundidas tais discussões com ataques
reacionários ao Movimento dos Trabalhadores Sem Terra, ligado aos grupos
políticos da esquerda brasileira. Contudo, à luz de um debate técnico
ambiental, não creio acertado me furtar a registrar esses comentários.
Sem
prejuízo da legitimidade do movimento, conhecido nacionalmente como MST,
reforçada pela atuação entre fraca e excessivamente prudente do Governo Federal
nas políticas fundiárias, o modelo escolhido está propenso ao fracasso. Salvo
algumas admiráveis exceções, noticiadas pela imprensa e passíveis da devida
verificação, os tais assentamentos são ocupações altamente predatórias ao meio
ambiente e se pretendem imensamente espoliativas dos recursos naturais.
Caminham na contramão da modernidade e até do pensamento ambientalista. O exame
do que vimos no Vale do Roda-Cuia comprovava isso.
Para
se iniciar a análise dos equívocos, os assentamentos existentes em grande parte
das terras goianas (não apenas este visto em Piracanjuba) são desenvolvidos em
terras caracterizadas como áreas de preservação permanente, de acordo com o
Código Florestal. Ou seja, ocupam áreas de terra que não são aptas para a
agropecuária, seja por sua vulnerabilidade à degradação, seja pelo mais
elementar amparo legal à conservação. Margens de córregos e rios, encostas
inclinadas, nada parece segurar a determinação dos novos ocupantes. Ali em
Piracanjuba, desde nossa entrada no vale, até a chegada ao centro dos
assentamentos, havia inúmeros exemplos do desbravamento de APPs, fosse para
exploração da madeira, fosse para plantio de pastagens ou instalação de
moradias.
Continuando
esta análise, que não se propõe em defesa de tese, mas se nota necessária, não
se pode acreditar que grande parte das terras observadas nesta data, no
assentamento de Piracanjuba, não se constituíssem em áreas destináveis à
manutenção de reservas florestais legais (RFLs). Bastaria que o observador olhasse
do alto da serra para a planície que cercava a área e se perceberia que a
vegetação então existente na localidade não correspondia à proporção legalmente
exigível como reserva (35% atualmente e 20% há alguns anos). O incauto poderia
afirmar que a Serra de São José mostrava admiráveis redutos dessa vegetação
nativa. Esquecem alguns que a esmagadora maioria deste maciço representa APPs
que são excluídas do cálculo das RFLs e, portanto, teriam que ser conservadas
de qualquer forma. Soubemos que boa parte das matas e cerradões que visitáramos
até aquele momento pertenciam a uma “reserva do INCRA (Instituto Nacional da
Colonização e Reforma Agrária)”, provavelmente correspondendo às RFLs dos
assentamentos em si. Onde estariam, então, as RFLs das fazendas que originaram
os assentamentos?
A
resposta para essa pergunta certamente dependeria de complexas ações
demarcatórias que, de tão caras e complicadas, jamais seriam realizadas.
Entende-se, desta forma, que as autoridades que teriam procedido à legalização
desses assentamentos teriam aproveitado indistintamente terras de APPs, RFLs e
demais talhões, a um só movimento, sedimentando assim uma solução simples para
a ocupação das áreas. Mas, como provavelmente jamais venham a ser estudadas a
fundo essas questões, lá estavam os assentados, que pouca ou nenhuma culpa teriam
disso e que buscavam então um rumo para seu sustento. Pois é justamente daí,
deste modelo de sustentabilidade pretendido, que parte o golpe final da
inviabilidade destes assentamentos.
Qualquer
técnico bem informado que se proponha a analisar a viabilidade econômica do
modelo agrícola brasileiro verificará os números apertados dos resultados da
atividade. Isso quer significar que as margens de lucro estão cada vez mais
curtas (o que é lamentável) e a escala dos empreendimentos vem se modificando,
de forma inquietante. Ou seja, áreas cada vez mais extensas de terras resultam margens
cada vez menores de lucros, viabilizam-se hoje apenas os grandes negócios. Isso
vem levando a gradual estado de inviabilidade os pequenos produtores, que vão
se extinguindo, Brasil afora. Mais uma vez, na contramão das tendências, surgem
os assentamentos como este de Piracanjuba, baseados em diminutas propriedades e
destituídos de qualquer assistência técnica, científica e econômica que os ajudasse
a fazer frente à virtual inviabilidade produtiva. O que vimos, em nossa
excursão, foram pequenas lavouras abertas na mata, de modo extremamente
primitivo, onde os trabalhadores plantavam manualmente roças de diminuto valor
agregado (arroz, mandioca e milho, entre outras), com pequenas perspectivas de
rendimento.
Volto
a alertar sobre a eventual má interpretação de minhas afirmações, talvez
entendidas como reacionárias ou favoráveis aos grandes interesses. Esse
entendimento seguramente se mostrará equivocado, se forem consideradas as
propostas de manejo para o parque natural proposto (Projeto Orquídeas de
Piracanjuba). Mas o que se observa como tendência natural para o assentamento
de Piracanjuba é uma sucessão de insucessos comerciais, por parte desses
pequenos produtores assentados, diante das suas tentativas de exploração
tradicional do solo.
Contrariamente
à opinião dos mais românticos, uma propriedade rural não pode ser mais hoje uma
célula fechada ao mundo. Não se pode esperar qualidade de vida para uma pessoa
ou família que não possa ter acesso à saúde, à cidadania e ao próprio mercado
de consumo em si. Dessa forma, o modelo de propriedade de subsistência está
definitivamente extinto e essas pessoas inevitavelmente irão buscar sua reinserção
na sociedade urbana. Vão precisar adquirir bens e serviços e não terão poupança
para isso. Não poderão sobreviver daquilo que produzem e passarão a
transacionar suas terras ou as abandonarão, diante da impossibilidade de fazê-lo.
Uma
alternativa danosa para o meio ambiente passa a ser a busca de apoio à renda
nas florestas e cerrados, através da exploração de seus recursos naturais. Pois
infelizmente era o que já se percebia, em Piracanjuba. A caça é o primeiro
recurso procurado para se obter dieta protéica. Isso ocorre hoje com toda
certeza pelos indícios que amealhamos em nossa excursão. A exploração da
madeira, como apoio à renda também era praticada e isso pudemos constatar, de
forma inequívoca. De resto, sobrariam atividades quase indignas para famílias
do mundo civilizado: coleta de frutos e raízes, apanha de animais para venda
etc.
Enfim,
modelos como esse praticado no Brasil para resolver a questão fundiária não
deveriam ser aplicados. Em os sendo, como era o caso de Piracanjuba e de boa
parte do estado de Goiás, deveriam ser acompanhados de Planos de Manejo, da
intervenção do Poder Público e da Sociedade Civil, com vistas a sustar essa
lamentável evolução que acabará gerando inúmeras favelas rurais e a
completa destruição do meio natural.
Mas, apesar da contundência do assunto, voltemos ao relato de nossa
excursão que passou a acompanhar as cercas de algumas dessas glebas rurais e
adentrou lavouras recentemente lavradas.
A
sensação desagradável de se caminhar por terras expostas à erosão e ao sol nos
fez procurar uma grota situada na cabeceira de um córrego, na direção e sentido
das montanhas nas quais caminháramos mais cedo. Percebíamos um adensamento da
mata no sentido do interior da grota e para lá nos dirigimos ansiosos. Após
deixarmos as últimas lavouras, caminhamos por leitos temporários de rios que
bem mostravam o aspecto torrencial da hidrologia local. O terreno arenoso era
cortado por ravinas naturais, que se alternavam entre si, na função de escoar
as águas copiosas, que deviam descer da serra. Algumas pareciam estar
temporariamente inativas, enquanto outras deixavam passar as águas do córrego
que vinha das montanhas.
Talvez
devido às fortes chuvas que assolavam Goiás no final do ano, as águas do
córrego se apresentavam leitosas, levemente turvadas. Acompanhamos o caminho do
rio, buscando o rumo de suas nascentes, serra acima. Desta forma, adentramos
uma vez mais nas matas densas, fartando-nos de sombra e frescor. A composição
arbórea da floresta era muito parecida com aquela das matas secas que percorrêramos
antes. Essas florestas ciliares, contudo, exibiam características mais ricas no
seu sub-bosque e se percebia nitidamente que a disponibilidade de água no solo era
o fator condicionante de seu surgimento. O botânico fitogeógrafo Rizzini já
demonstrara que, no Brasil Central, a umidade do solo pode compensar o efeito
de maior fertilidade aparente e ensejar vegetação luxuriante, lado a lado com outras
mais pobres.
Aumentava
a quantidade das mesmas espécies de orquídeas avistadas antes. Em galhos muito
elevados, podiam ser avistados exemplares de Cattleya walkeriana, corroborando o que garantira Sebastian, pouco
antes. Uma arácea endêmica dos cerrados de Goiás e Mato Grosso se exibia
em grande quantidade nas porções mais iluminadas dos grandes troncos: Philodendron mello-barretoanum,
com imensas folhas recortadas e raízes longas e finas que descem das alturas
até encontrar o chão da mata. Caminhamos com alguma dificuldade pela encosta
densamente florestada. Caminhos temporários surgiam e desapareciam, como por
encanto, coisa bastante comum nas matas tropicais. O vale do rio, por vezes, se
encravava em grotas íngremes e profundas, atestando uma vez mais o caráter
movimentado do encontro entre relevo e clima nessa região. Isso nos obrigava a
realizar grandes voltas ou a fazer quase escaladas pelas encostas declivosas.
Chegamos
a um recanto de extrema beleza, no qual paramos alguns minutos para nos
refrescar e dessedentar. Era um conjunto de cascatas murmurantes que descia
pelas rochas escuras, entre samambaias, filodendros e orquídeas. Tratava-se de
local extremamente aprazível para integrar possíveis trilhas ecológicas nas
matas. Dali para cima, a serra começava a se acentuar, prometendo a repetição
de mais e mais recantos como aquele.
Avançando
já bem tarde a hora, achamos por bem retornar de nosso passeio, uma vez que
estávamos bastante longe do automóvel. Pensamos que o objetivo de nossa
incursão estava praticamente atingido: o reconhecimento preliminar da natureza
local. Avistávamos densa fumaceira sobre a mata e, já havia algum tempo,
escutávamos o ruído assustador do fogo a crepitar no vale abaixo. Também já
ouvíramos vozes, o que nos dera a clara certeza de serem os posseiros a atear
fogo nalguma coisa. Temíamos que viesse o cerrado a queimar, quando poderíamos
ser surpreendidos, em meio à macega, sem podermos fugir. Receosos, fomos
descendo mais ou menos pelo caminho pelo qual subíramos, inserido na mata densa
e menos vulnerável ao fogo.
Por
alguns instantes, antes que saíssemos da mata, escutamos conversas de gente que
andava por perto. Encontrando-nos tão longe e desprotegidos, tratamos de nos
fazer bem silenciosos e, por instantes, aguardamos o deslocamento daquelas
pessoas. Na medida em que se foram distanciando os ruídos e certos de que o
fogo não nos surpreenderia, ganhamos o cerrado denso e contornamos as lavouras
por onde entráramos. No cerradão, encontramos exemplares de uma espécie de Catasetum (gênero de orquídeas
comuns no Brasil Central). Em poucos minutos, chegamos à cerca de um dos
assentamentos e pudemos observar, sem sermos avistados, um grupo de lavradores
que plantavam arroz com matracas manuais. Eram eles que utilizavam o fogo para
a limpeza do solo, sem qualquer cuidado para que este não se propagasse cerrado
adentro.
Caminhamos
ao longo da cerca que separava as lavouras do cerrado, adentrando-o em alguns
trechos. Aos poucos, fomos retornando na direção do carro, satisfeitos por
termos estado em locais tão belos, mas preocupados com seu destino frente à
inexorável escalada humana sobre a natureza. Refletíamos sobre as
possibilidades de se implantar, naquela região, uma extensão do projeto que
iniciávamos para a cidade de Piracanjuba, que consistia num centro de
convenções e exposições de orquídeas. Natureza e ser humano pareciam conspirar
para que isso acontecesse. Pelo lado da primeira, surgiam paisagens e recantos
belíssimos, acompanhados de atraente biodiversidade, prontos a serem
transformados num parque. Por parte do ser humano, vislumbravam-se grandes
possibilidades de se aproveitarem os assentamentos e sua gente como apoio para
projetos de manejo turístico e ecoturístico. Uma fazenda situada ali bem
próxima e com divisas diretas para estas reservas florestais, parecia estar
disponível para que o Estado e o Município implantassem uma unidade de
conservação. Enfim, pareciam existir grandes esperanças para as orquídeas e
matas de Piracanjuba, desde que assim se desejasse.
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